quinta-feira, outubro 28, 2004
Asas do Desejo
Ontem fiz a mudança mais estranha de toda a minha vida de carregador profissional. E eu já mudei de tudo um pouco. Em circunstâncias bem adversas ou curiosas e bizarras. E para se perceber de que quando falo em circunstâncias bizarras é mesmo de circunstâncias bizarras de que falo, basta dizer que uma vez um pianista meio louco quadriplicou o pagamento da mudança na condição de que transportássemos o piano com ele sentado, a tocar. O que vale é que eram umas escadas enormes, largas, bojudas e avantajadas. Descemos sete andares escutando o concerto para piano de, sei lá de quem era, esqueci-me do nome, só me lembro da música. Nunca mais me sairá da cabeça. Nunca compreendi bem o objectivo do gajo que nos contratou. Também, pagando o que ele pagou é natural que não quisesse entrar em muitas explicações. Quando chegou cá abaixo à entrada do prédio, levantou-se, ele estava vestido de fraque, é preciso dizer, fraque e camisa de rendilhado, baixou a cabeça fazendo uma vénia, nós éramos oito mais o patrão, com pianos tem de ser assim muita força bruta, e ainda ele estava curvado, o patrão deu o mote e batemos palmas, muitas palmas. O patrão, eu sou meio básico mas ele é bronco mesmo, até gritou em pontas:"-Bis! Bis!". Nós aí já não alinhámos.
É por isso natural que eu esteja preparado para tudo e que encarasse a mudança de ontem como algo perfeitamente banal. O Sr. Manel, o patrão até disse, olha, vais só tu e o Américo - o Américo é o condutor - são só uns caixotes de livros. Assim foi. O Américo ficou cá embaixo, fui lá acima medir o carrego. Quando entrei, havia uma grande sala vazia. Logo ali senti um calafrio. Havia ali gente naquela sala desabitada de tudo. "-Entre."- disse-me uma voz de dentro da outra divisão da casa. Aproximei-me. Sentado a uma escrivaninha um homem, de cabelos brancos e velhos, tinha o dorso enrugado sobre o tampo, não teria menos de sessenta anos. Escrevia com caneta de aparo. Nem levantou os olhos do papel. Apontou-me uns caixotes de papelão vazios. Percebi que queria que encaixotasse os livros. Não o costumo fazer, regra geral quando chego a uma casa já ela está toda empacotada, mas não há nenhuma lei que o proíba. Acresce que eu sempre gostei do cheiro do papel ligeiramente envelhecido, de lhe tocar. O velho continuou a escrever. Dei-me conta de que havia um monte só de um autor e num deles, na contracapa, havia mesmo a sua foto. O velho escrevia um livro, mais um livro,
o último, corrigiu ele, entrando assim inadvertidamente no meu pensamento. Quando ouvi a voz dele cá dentro da minha cabeça, e tenho a certeza de que ele não falou para fora, tive um pequeno ataque de pânico. Nunca fui de ouvir vozes mas em pequeno tive uns episódios mistícos. Um dia, se me der para aí, falo disso. Agora não. Estava eu a arrumar os livros, podes abri-los, ouvi novamente dentro de mim, era como se ali se erguesse uma segunda realidade, e eu à sua porta, folheei o primeiro, tinha uns anjos, não gostei, não gosto de anjos, sou mais das alegorias, das cavernas, dos símbolos esotéricos, estes anjos são diferentes, são teus, disse-me uma e a mesma voz, e era, um anjo loiro, parecia a Anabela, a manicure que me deu uma nega há dois anos e que não há dia nem noite que não me ataque o espirito, sobrevoando-o, parecia a Anabela mas com asas, pensei, acto imediato as asas cairam, estou melhor assim, disse-me o anjo, quer dizer a Anabela, fosse quem fosse, era uma voz, tudo estava em silêncio menos aquela voz, agarrou-me na mão, para onde me levas, pensei, já viveste dentro de um livro?, perguntou-me, abanei a cabeça, ou nem isso, bastou-me pensá-lo, talvez tenha mesmo acrescentado, não sabia que se podia viver dentro de um livro, claro que se pode, não é bem dentro dele, é no de fora dele, os livros são como todas as coisas, têm o lado de dentro e o lado de fora, é nesse que nós habitamos, nós, balbuciei, sim nós, foste tu que aqui vieste, lembras-te?
Nesse momento afortunadamente um livro caiu ao chão, tinha escorregado da mão do velho que escrevia. Dei um safanão em mim mesmo desapartando-me de um estranho torpor. O velho escritor sorriu, e, sem folhear mais nenhum, comecei a enfiar os livros dentro de uma caixa que fechei e de imediato carreguei. Estás branco, disse-me o Américo, quando cheguei ao pé dele. E estava, tinha sido tudo muito estranho. Não sei se foi do papel amarelecido, se foi de um outro mundo que, como um clarão se abriu. Mas pelo sim pelo não logo vou telefonar à Anabela. Vou com ela até Vila Nova de Gaia, tomamos um cálice de porto. Ela gosta, reparei que ficou um pouco mais endiabrada da outra vez depois de beber apenas um copinho. Depois conto-lhe a minha história. A mudança mais estranha de toda a minha vida de carregador profissional. Talvez consiga acrescentar uns pormenores para parecer mais verdadeira. Não sou muito imaginativo mas hei-de conseguir. É uma história que não me acontece todos os dias. Aliás, não acontece nunca. Geralmente sou eu que mudo as coisas, não estou muito habituado a que elas me mudem a mim.
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3 comentários:
olá
Ia eu armar-me em crítica literária quando resolvi ler os comentários do anterior post do homem das mudanças. Embatuquei e pensei em não escrever este comentário. Mas vou fazê-lo na mesma, correndo o risco de ser antipática e pior q isso pretensiosa. Mas é que gostei tanto do outro post... E este parece-me muito menos verdadeiro, I mean, não parece o mesmo gajo a falar.
Bom fim de semana
Isabel
Caro Vicente:
Este seu comentário é simplesmente... fantástico!
Vi Asas do desejo, de Wim Wenders, e numa busca encontrei o teu texto. Lindo. E delicioso o teu português.
Míriam - Florianópolos - Brasil
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