terça-feira, outubro 26, 2004

Expulso da Casa do Senhor

Ao descer o Chiado, e não sei porque é que desci e não fiz a minha curva de todos os dias em direcção ao S.Luís, alguma coisa passou por mim ou eu passei por alguma coisa, talvez tenha sido aquele Ruy Belo na voz de Luís Miguel Cintra, vejo que a porta da Basílica de Nossa Senhora dos Mártires está aberta. Nunca erradiquei este hábito que verdadeiramente só conheci enquanto ateu: entrar numa Igreja e mergulhar na mais profunda e tranquila consciência de mim. Sento-me no banco. No segundo banco da fila da esquerda, bem encostado ao corredor. Dá-me vontade de tirar um curso rápido de arquitectura e história de arte para poder conhecer esta igreja. Parece-me magnífica. A abóbada escura, relapsa e atrasada na reflexão das imagens, da luz, escondida atrás dos fumos das velas que escorrem para o tecto, contrastante com a pedra. Um Cristo, rei de todos os mártires, no topo da nave central, guardado por dois candelabros quietos e imóveis. E isso não é o de mais belo que toda esta estrutura de mármore tem para oferecer. Em todo o topo lateral, encrustadas em ogivas que recaiem como flores tombadas pelo peso, grades nas janelas, deixando passar a luz sem algum filtro ou vitral. As grades reflectem-se ainda nas paredes, nas paredes negras e escuras. Tudo é a propósito do martírio que se explana. Algo me atira para o exterior desta irrealidade. De repente tinha esvoaçado da Basílica de Mafra dos meus primeiros tempos, para a Basílica de Nossa Senhora dos Mártires. Começam a tropeçar no meu olhar algumas personagens bizarras. Uma mulher de camisola vermelha atravessa a passos rápidos e pesados todo o corredor lateral direito. Entra na sacristia e volve, com um martelo na mão. Outro homem, mas será mesmo outro, ou sempre o mesmo, o mesmo homem?, percorre lentamente o corredor do lado esquerdo. Não fazem nada de especial mas ao vê-los, a cada um e aos dois, penso exactamente na mesma coisa: estarei ainda na Casa do Senhor? Um pesado restolhar dos batentes das portas revela-me a resposta. Ouço vozes atrás de mim. "Ainda está ali um senhor.", dizem. Um deles vem ter comigo, coloca-se no corredor, mesmo ao meu lado. "-Vamos fechar." respondo-lhe que sim, que vou só demorar um poucochinho. O seu sorriso imperturbável diz-me que, fechamos às sete". Ergo-me. Como explicar-lhe que naquele momento em que a procuro, aquela é a minha casa? Sinto a mesma perplexidade de que António Alçada Baptista falava numa crónica longinqua de "O Tempo nas Palavras", e em que contava que ao procurar numa segunda feira a confissão, encontrou apenas a voz fria e indolor do padre de serviço, "-Confissões são às terças e quintas". Lembro-me das igrejas que em todo o mundo da vida dos homens foram lugares de reserva, de acolhimento, de recolhimento, de abrigo, zonas de não fronteira, terras não cartografadas onde o homem se protegeu do próprio homem. O que teria sido isso na experiência do homem se em cada uma delas houvesse um letreiro a dizer, "Fechamos às Sete". Saio da igreja disposto a abrir um pequeno sulco no meu silêncio e entro no primeiro cibercafé que encontro.

3 comentários:

vague disse...

jpn, o metablogue é tão interessante como conceito e projecto. Está abandonado?

JPN disse...

ainda anteontem falei disso com o "Socioblogue", outro parceiro indispensável do projecto. Também a nós nos parece que tem todo o sentido fazê-lo. Vamos a ver se, de uma forma ou de outra, o retomamos. Estás-te a colocar do lado da leitora (já vi os destaques que fizeste) ou da futura colaboradora?

Carla de Elsinore disse...

comprendo-te , em relação ao espaço-igreja-reflexão. já há muito que não o faço mas gosto. quando era miúda costumava ir ao estádio da luz (vazio), a mesma busca. e não fechava às sete. ;)