segunda-feira, outubro 25, 2004

Visões

Estive há pouco tempo em Genebra. Organizei os museus e as galerias de arte por bairros porque tinha pouco tempo. As ruas e as pessoas é que se distinguem, no entanto, como verdadeiros ícones da diferença, aquilo que é distinto e que se procura encontrar para além da nossa própria realidade. E foi nas ruas que encontrei múltiplos concertos de música clássica, peças para violino, acordes de piano, audições para alunos já com alguma formação importante, e até um grupo de jazz de Nova Orléans. Todas estas sonoridades apercebiam-se em ruídos abafados, colados a pesadas portas de edifícios antigos. Carreguei no botão de algumas campainhas e, invariavelmente, abriam-me as portas umas senhoras do tipo louro franzino, olhos azuis doces e, sobretudo, de uma delicadeza quase reservada. Não resistia ao convite e entrava, e ficava muito quieta perscrutando os interiores, os músicos e as pessoas que assistiam, até que a curiosidade se alheava para longe, e depois só existiam os sons, a composição das notas, esse imenso interior de nós próprios. Durante longos minutos, que por vezes se transformaram em horas, apesar do tempo se esgotar para outras coisas. Enfim, a cidade era uma espécie de gruta onde era só necessário fazer como Aladino; à semelhança, também, das grutas nas encostas das montanhas de Granada, onde se ouve, dança e exalta com o flamenco dos ciganos. E isto era surpreendente na cidade de Rousseau e de Calvino. Uma cidade organizada pelos relógios e pela banca financeira. Escolhi uma manhã cor de cinza para ir ao Museu Internacional da Cruz Vermelha, outro símbolo da cidade. O museu está implantado no interior de uma montanha. Desci os degraus e num grande hall, espécie de antecâmara às exposições do museu, encontrava-se um grande ecrã, a que não prestei muita atenção. Observo as paredes negras em volta. Ao longo destas, expõe-se a história cronológica da CV. Estou tão concentrada, que a música que começa a chegar até mim parece sair dessas paredes. Maquinalmente, olho para o centro do hall e compreendo. Dirijo-me para o grande ecrã e observo: imagens de guerra, sofrimento, dor, destruição, pilhagem, fome, em diversos pontos do globo, e no centro de tudo isto, a imensa precariedade do homem e a sua insanidade. Deixei-me cair num banco e, durante muito tempo, vi e revi as imagens que, apesar da sua crueldade, revelavam uma enorme beleza, que só depois percebi: o fascínio, o fascínio literal daquelas imagens, provinha da sua simbiose com a música que se escutava, acompanhada de uma voz feminina, um canto que era um lamento, um apelo às consciências e, simultaneamente, um halo humano de resistência. A letra da música era em árabe, mas tudo isto lá estava contido, sem dúvidas. Corri ao andar de cima, à recepção, queria conhecer o nome do autor, saber o nome da música, a impressão daqueles longos minutos é ainda muito intensa. Voltei a descer as escadas e tive outra surpresa. Além da exposição permanente do museu, o tempo voltou a parar na exposição temporária “Zona”. Zona é o nome em gíria siberiana para designar prisão. Em 1950, mais de 12 milhões de indivíduos, na sua maioria prisioneiros políticos, viviam nos goulags descritos por Soljenitsyne. Hoje em dia, ainda existem 135 destas prisões onde estão encarcerados mais de 1 milhão de detidos de direito comum. Durante dois anos, Carl de Keyser passou vários meses na região de Krasnoïarsk, na Sibéria, fotografando a vida quotidiana nestes campos. O fotógrafo nunca conseguiu distinguir claramente entre o que era encenação, para a objectiva, ou realidade. A longa burocracia que teve que ultrapassar para conseguir entrar naqueles campos, as marcas recentes de pintura, o cheiro intenso a lixívia e ainda outros sinais, quase imperceptíveis, mas presentes nos locais onde lhe era permitido andar, faziam sentir ao fotógrafo uma sensação de non-sens, que resumiu assim: “What I saw there was quite surprising. (…) I had an idea of black and white, dark pictures, torture. But the camp itself is sort of a Disneyland. You come into a gate decorated with metal soldiers made by the prisoners, here are huge murals, famous Russian paintings about glorious moments from the Middle Ages or even earlier; at the entrance also there is a huge steam train on top of the gate, there’s a wooden windmill, Don Quixote, there is a pyramid, Egyptian style (…) just like you would see at the entrance of any cheap amusement park.” Todos os espaços têm relações entre si, e os acontecimentos estão ligados. São uma espécie de célula que compõem um espaço maior. O sofrimento humano é uma espécie de narrativa englobante. Descrever a cidade de Genebra é a única maneira de descrever a cidade, estabelecendo-se uma relação entre descrever uma coisa e viver uma coisa. Descrever as coisas é que se torna importante, estarmos a viver na cidade seria insustentável. O que podemos conhecer de uma coisa é o que observamos e retemos na nossa memória. Não podemos entrar no objecto. Esquecem-se, pois, de Genebra os relógios e os bancos, e ficam impressões marcadas no fundo da alma.

2 comentários:

JPN disse...

Benvinda ao teu respirar.

Anónimo disse...

Vivi há uns anos e por uns meses em Basileia, como não tinha muito dinheiro não podia ir a concertos "organizados" mas passava boa parte do tempo livre a assistir à belíssima música que se fazia por todas as esquinas. Privilégios de países ricos. Obrigada por me recordar esses tempos.

Isabel Prata