terça-feira, novembro 02, 2004

Biblioteca

Ao arrumar os livros na estante tentando que caibam lá todos os volumes, mesmo que em segunda fila, mesmo que apinhados, tento organizar uma classificação e isso faz-me lembrar uma biblioteca. A biblioteca, diferentemente de uma igreja, também é para mim um lugar fora do mundo. A minha primeira biblioteca era apenas uma estante, a que havia lá em casa. Depois, ainda em miúdo, nas tardes em Mafra, lembro-me daquelas carrinhas cinzentas de chapa folhada da Gulbenkian. Apercebo-me do tempo que tem a adolescência pelo tempo que nela entreguei às bibliotecas sem me ter privado nunca das restantes consumações juvenis. Não creio que ninguém tenha sabido nunca o tempo que eu consagrei à minha actividade de rato de biblioteca. As tardes esquecidas embevecido por aquele tempo denso, pesado. Ouço ainda os passos dos empregados arrastando-se entre estantes, colocando os escadotes. Anotando lentamente aquelas fichas, sempre as mesmas, sempre tão inutéis, sempre tão judiciosamente preenchidas. O shiuuuuu dirigido àquela mesa onde quatro raparigas adolescentes galhofavam. Não há solidão numa biblioteca, é mal que ali não se cumpre nem se recita. Havia nos Olivais duas Bibliotecas que eu frequentava à vez. Uma, mesmo ao pé do Supermercado da Polícia, mais perto mas com menos livros, a outra na Piscina, uma Biblioteca camarária, com um razoável número de títulos, pelo menos para as minhas necessidades da época. Quando a estante lá de casa ou a escassa mesada esgotaram os meus recursos em Somerset Maughan, Steinbeck, e Pearl Buck era lá que arranjava modos de continuar ligado a essa paixão pela leitura. Foi lá que travei contacto também com Heminghay, William Faulkner, Morris West, Aldous Huxley, Alves Redol, José Gomes Ferreira, escritores que depois redescobri na estante lá de casa. Começo a arrumar os livros na minha estante. É uma estante provisória, que comprei só para o mestrado mas que agora tem sido definitiva. Um dos primeiros livros que encontro é um livro que já me tinha esquecido que tinha: "O dia cinzento e outros contos", do Mário Dionísio. Assinado pelo próprio. Na segunda página, a tomada de posse do livro, uma assinatura em diagonal da minha mãe. Gosto dos livros com dedicatórias. Algumas dos seus autores, muitos deles companheiros da escrita dramática, outras de pessoas que se prolongaram em livro, principalmente amantes. Num livro de António Ramos Rosa, Respirar a Sombra Viva, descubro o estilo sintético com que ela, à mais de vinte anos, me tomou como seu, maldizendo-me o futuro: "Tens nos olhos desenhado o amor". O livro mais precioso que tenho, "Com a Morte na Alma", de Jean Paul Sartre, com uma dedicatória de meu pai: "Ao Quim Paulo, nos seus dezoito anos, para ler e reflectir comigo". Também uma Bíblia Sagrada, aos meus vinte e um anos, da minha mãe. O Este é o meu Corpo, da Filipa Melo, assinalando a minha primeira dedicatória em conjunto com o Peter Pan. Arrumo os livros por áreas e de repente verifico que estou a organizar a minha vida: um quadrado para a animação sócio cultural, outro para a expressão e jogo dramático, outro para a comunicação, outro para ensaios e discursos sobre filosofia, politica, sociedade, outro para a escrita teatral, aliás, não é só um, são quatro (um para o ensaio, outro para os autores portugueses, para a dramaturgia espanhola e outro para a francesa). Assim se faz uma bilbioteca. Um percurso.

3 comentários:

JPN disse...

Vou-te responder em duplicado também, já que na minha caixa do correio recebo todos os comentários. Preciso de revisor, sim senhora. Estou cada vez mais perguiçoso mental, primeiro as calculadoras, depois os revisores ortográficos, deixei de me preocupar tanto com aqueles erros pessoais que já fazem parte de mim mas para os quais ia mantendo alguma vigilância. Por exemplo, desde miudo que não digo bem os erres e por isso palavars como pormenor, percurso, andam muitas vezes por promenor, precurso. Advérbios acentuados, é também um erro vulgar em mim. Ou este, que tu bem apanhaste e que por sinal, tinha corrigido um igualzinho noutro texto. Ou baralhar-me no lado para que sopram os acentos em alguns pronomes. Quinquilharia diversa mas a merecer justo reparo. Obrigado. Quando passo à segunda pelo texto, geralmente apanho-as, ou o revisor por mim, mas aqui é bem mais complicado. Por isso, se te candidatas, estás contratada.

Anónimo disse...

comentário aos comentários: preguiçoso e não perguiçoso

Ferran Moreno disse...

Ora pois! Estão cá a falar em bibliotecas! Gostei imenso, não só como empregado duma biblioteca, também como possuidor de livros, arrumados também em segunda fila, apinhados, nas estantes o em cima da secretária...