terça-feira, novembro 02, 2004
Noite e a seguir, o que vem depois
Trinco a minha noite até ao caroço da cereja. É pura, é donzela, é fresca como uma serpente de olhos esbugalhados, a minha noite. Não me atrevo a tal mas estremeço. Calcorreio os seus dedos e de repente, sonho. Enleio-me. Desperto só para me dar conta disso mesmo, sonhei. Há uma inquietude, mas não mais do que isso, um estremecimento, um, voltarei a dormir? E duas horas mais tarde descubro que sim, adormeci de novo. Acordo somente com o despertador. Entorpecido. Abro a janela para o rio, para a minha liberdade. Demora tão pouco a soletrar esta palavra, demora tanto tempo a decifrá-la. Vai fazer um ano que entre a minha liberdade e a minha liberdade, escolhi, ser livre. Deixo a roupa na corda. Ontem fiz uma sopa de espinafres surpreendentemente magnífica. Tinha ido ao Pingo Doce. Não havia batatas. Ainda pensei que era um racionamento, a contar com alguma imprevisibilidade das eleições amaricanas. Não, era mesmo assim, deduzi pela cara com que a empregada me respondeu, como se dissesse, são quase nove horas e está a perguntar se há batatas?, encolhi-me, eu e mais aquele travo a sopa de nabiças que já se me atravessava e dançava, frenético, no palato, nem disse mais nada, enfiei-me na fila, a rapariga da caixa deve ter reparado no meu acantonamento em mim, meteu-me tudo dentro dos sacos, sossegou-me com um sorriso final. Foi aí que nasceu a sopa de espinafres. Tinha-os comprado há meses e colocado no congelador. Um dia vão ser precisos, pensei. E foram. Com mais duas cenouras. Havia também um nabo. A minha ex-mulher (como me soa mal esta palavra, desculpa I, mas não me atrevo a dizer-te o nome aqui e também me parece que neste caso mãe do meu filho não designa nada) era com abóbora, a minha mãe é com nabos. A minha porteira é com cebola, disse-me no outro dia, com cebola salva sempre uma sopa mais exigente. Cada mulher tem uma horticultura fetiche, parece-me. Eu é com ervas, orégãos. Coentros, salsa, hortelã. Deixei tudo em água, a cozer. Esgrimo bem o micro-ondas, sou até uma pessoa que consigo surpreender rápidamente fazendo lá umas batatas a murro, ou um arroz, fica tão soltinho o arroz no micro-ondas, mas quando me quero sentir confortável e intimo de mim mesmo tem de haver um rasto de vapor da cozedura de algo, legumes, fruta, peixe, ovo. Aquele borbulhar parece-me que traz lá dentro o princípio do mundo, aquele momento do estilhaçar, do Big Bang. E depois, já com o princípio do mundo, e o que quer dizer, com o seu fim - não restam muitas dúvidas de que o mundo acabará como começou - a sopa de espinafres. Sorvida a golpes de marinheiro, enquanto vejo pela janela da cozinha as naus quinhentistas no meu Tejo de outros tempos, regenera-me de todos os dias e de todas as noites em que de mim me escorracei, em que tive medo do negrume, da escuridão. Deste aprisionar-me na minha própria liberdade.
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5 comentários:
tenho a sensação no dia a dia que, na minha opacidade, não me deixo ver. nem a mim mesmo. e o que se passa comigo passa-se com a maioria das pessoas que conheço. serem assim as palavras aqui, um momento de visibilidade minha, é de festejar. mas não te iludas, és tu que lês bem.
uma bela respiração amigo!
Se de facto a Alice não for um peludo barbudo muito gostaria de lhe devolver a foto que lhe roubei e afixei no Fórum Comunitário, mas como sei que a Alice já não mora aqui e nem sequer se passeia pelo país das maravilhas apenas envio um abraço ao Respirar o Mesmo Ar…
WR
Como tem charme um homem que sabe cozinhar... (E que pena que haja o prefixo "ex" nas nossas vidas.) O mundo não vai acabar como começou, vai acabar mais frio, terrivelmente frio, com galáxias cada vez mais distantes umas das outras. Há que aproveitar o calor que resta do princípio do mundo. Urgentemente.
Não te parece estranho e verdadeiro sentir que a opacidade se entrelaça com a transparência que renegamos porque naquele momento estamos demasiado nús? Sinto-me quase irreal, hoje, neste preciso momento, irreal e transparente. Não quero sair à rua hoje, os meus olhos revelar-me-iam toda. E dispo-me aqui suavemente, num blog que não é meu, procurando nele ficar opaca, como se desabafasse no escuro, como se me despisse com a luz apagada. Pelo que a nudez é irreal. Transparente.
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