quarta-feira, novembro 03, 2004
Madrid
Amanhã. Ao Salão do Livro Teatral. Onde esperamos fundar a Federação Europeia de Associações de Autores de Teatro. Voltarei assim a andar de comboio. Não me apeteceu ir de avião, a organização acolheu de bom grado a troca, vou assim a dormir. Recuperei um medo antigo de andar de avião - medo que só tinha abandonado depois da minha primeira viagem aérea, tornando-me um entusiasta - mas agora, curiosamente, com uma versão restrita: Lisboa-Madrid. Confesso que o mundo nos ares perdeu muito daquele encanto que tinha depois do 11.9. Aliás, admito, foi o mundo que a partir daí perdeu vertiginosamente muito da sua graça e encanto. E esse é verdadeiramente o princípio do fim. Quando deixamos de nos encantar e de nos comover com a vida da qual fazemos parte. Mas estava a falar de aviões. Ou, pretendia eu falar de aviões. Há dois ou três anos fui a um congresso de comunicação em Málaga. Foi engraçado porque na mesma viagem se juntaram os professores da Nova, onde eu tirei o Curso e os do ISCTE, onde eu me mestrava. E ainda me lembro da conversa inicial, em que alguém dizia que no voar o verdadeiramente anti-natural era o momento da descolagem e da aterragem. Este ameno debate haveria de ser aliás, premonitório do que aconteceu a seguir. Cinco minutos depois de termos levantado voo, íamos ali sobre Coruche, ainda a subir, começamos a sentir que o avião parecia estar a competir com uma solista do Ballet Gulbenkian, dir-se-ía que voava em pontas. As hospedeiras tinham acabado de distribuir o buffet - ainda havia - e começam a retirá-lo, sem mais explicações. Correm pelos corredores e como nós as olhamos um pouco atónitos, gritam, com voz tranquilizadora:
- No se passa nada! No se passa nada!
Olho o Paquete de Oliveira a meu lado, aquele rosto de sociólogo tranquilo sorri, olha se se passasse!, parece dizer.
Momentos depois a voz embargada de um comandante que deitava acne pela boca:
- Senores...está tudo bien....tranquilo...há fuego en la cabina...vamos aterrar de emergência no Aeroporto da Portela.
O Paquete ainda me pergunta, ele disse fogo ou fumo, já nem lhe respondo, fico calado, são atrozes estes momentos, só recupero ligeiramente quando o avião guina e faz o caminho de regresso, começo a pensar, não sejas parvo, é lá possível que um avião caia no coração de Lisboa, isto vai dar tudo certo, namorados mordiam-se com as mãos entrelaçadas, havia gritos de horror, o único avião que caiu nestes anos todos foi o do Sá Carneiro e esse era pequenino, vou assim entretendo o pensamento até que chegamos à pista, ficou-me a sensação real do que nos ocorre quando sentimos verdadeiramente que entre nós e o infinito há apenas mais, muito mais infinito.
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