quarta-feira, novembro 17, 2004
Saberão eles para onde vão?
Foi no outro dia. Estou à espera da Celta num daqueles cafés que têm aconchegos nocturnos, pastas, gelados, carnes, sandes e tostas. Passa o tempo, uma hora. Em relação a ela sempre pensei que a qualidade de uma pessoa se mede pelo tempo que estamos dispostos a esperar por ela. E por ela há meia dúzia de nós que esperaremos, e sem algum amargo de boca, uma eternuridade.
Assim foi.
Começo a entreter-me com os movimentos em volta.
À minha frente tenho um casal de namorados. Ele veste um casaco de cabedal castanho e uma blusa de gola alta. Mexe a cerveja olhando-a, para não levantar os olhos para ela. Não tive dúvida alguma do premeditado que era esse não olhar. Mais, ela sabia que ele mexia na caneca para não a olhar a ela e isso parecia-lhe bem, bem demais.
É esse instante de representação que me liga àquele par.
E porquê, perguntar-me-ei depois? É a representação que lhes devolverá a intensidade, a autenticidade. É no serem ali falsos, pudorosamente falsos, vulneráveis e frágeis diante do meu filtro crítico, que tocam ao de leve na verdade que lhes está disponível.
Ele representa a seriedade, fala com ar sério, como se estivesse privado de sorrir. Há-de, nos séculos que se seguirão desse amor delirante que os há-de consumir até ao álcool ou um qualquer consultório de um psicoterapeuta, cobrar-lhe essa privação. E ele sabe-o agora e por isso é perverso, canalha e não deveremos ter por ele alguma piedade. Ele sabe, de uma intuição bruta, uma intuição que nasceu com ele, que está a amealhar uma divida que, escrupulosa e diária pelos séculos que vivemos quando nos eternizamos no horror, o levará um dia ao seu próprio céu, diriamos, inferno.
Sorri por isso sem condescender. Olho aquele sorriso e estremeço. É o esbranquiçar da morte.
Ela não representa menos embora pareça que não. Começa a saltitar na cadeira tentando atingir-lhe o pescoço, a cara, a bochecha, o lóbulo, o que calha.
Esqueci-me de dizer, têm, desde há muito, as mãos ligadas. É um pormenor muito importante.
Ele fala de coisas graves, como convém a um deus e a um poeta e não há alguma dúvida, naquele momento ele sabe que será o deus dos pequenos dias daquela mulher. Fala de promissórias, prestações, de progredirem, e a ela isso excita-a, nota-se,, como se fosse um batente, vai saltitando tentando apanhá-lo naquele ósculo calhante.
Pousaram o crepe em cima da mesa, no lado dela, claro. Um crepe mais ou menos simples, com uma bola de gelado e um fio de chocolote.
E ela representa novamente mas baralha-se. Baralha-se com o garfo e a colher, anda ali para trás e para a frente, da direita para a esquerda, faz um olhar concentrado. Ela quer fazer bem. Tudo bem. Quer comer bem aquele crepe. Manejar os instrumentos certos. Fazer as poses acertadas. A sua mãe olha-a por cima do ombro.
Saberão eles para onde vão?
Estou preso a este par. Na muldidão do sururu do café que se foi enchendo estou obcecado por eles.
Comecei a compreendê-los através das personagens que se enunciam. E se é cinismo, um profundo cinismo que me anima por todos nós, esse cinismo é também marca de um humanismo que diante da condição humana continua em fase crescente.
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