Há uns anos atrás numa viagem de comboio Lisboa/Porto, assisti a um episódio muito curioso.

Tudo começou quando duas raparigas, que estavam sentadas uma diante da outra, começaram a falar das suas vidas. Uma delas contou que já não falava à mãe há mais de um mês, desde que esta lhe tinha deitado fora duas bonecas de trapos. Logo ali me espantei.

A outra em vez de se centrar naquilo que para mim era mais importante,
como é possível mãe e filha conviverem um mês na mesma casa sem se falarem?, respondeu falando das suas próprias bonecas. Estava dado o mote. Ao lado ía um homem e uma mulher. Esta, quando a outra acalmou a revelação, juntou-se à lareira da palavra e começa também a falar das suas bonecas. Do banco da frente há uma cabeça que se elevou e mais uma mulher, filando os braços no encosto como quem pressente que a conversa vai ser longa, juntou-se ao rodízio. O mesmo aconteceu com uma outra mulher de um banco ainda mais afastado que pressentiu o tema e que avançou, mantendo-se no corredor encostada ao banco. Como estava gente a passar havia alguma incomodidade. O homem que estava sentado ao meu lado levantou-se e ofereceu o seu lugar à mulher que estava de pé. Ao lado eu ripei do meu caderno preto das anotações e começei logo ali a desfiar a ideia de um documentário chamado
Casa de Bonecas. A ideia que me deu é que a boneca, para além daquela existência de
objecto transacional que é vulgar acontecer com alguns brinquedos e bonecos, funcionava como que uma espécie de espelho que rapidamente detonava as memórias daquelas mulheres ( e estavam ali gerações perfeitamente distintas).
Lembrei-me disso quando através deste
blog chego a
este delicioso post, que sendo já de si prazenteiro, mais saboroso se torna com os comentários das mulheres que lá deixam as suas memórias dos tempos em que brincavam com bonecas:

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Quando eu brincava com bonecas contava-lhes ou lia-lhes histórias. Depois, fazia-lhes perguntas sobre essas histórias. Como não abriam a boca, dava-lhes “Não Satisfaz” (tinham cadernetas). Se gostava mesmo de alguma, imaginava-a a dar respostas brilhantes e dava-lhe boa nota. Em dias menos sisudos, expunha-lhes teorias improváveis, irritava-me porque não as compreendiam e prendia-as (atirando-as para o vão de canto entre as estantes do meu quarto, de onde só poderiam sair a voar), não sem antes lhes gritar admoestações arrogantes, cobrindo-as de vergonha."
Ana (Autora do Post)
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Eu fazia um pouco de tudo. Dava-lhes aulas, lavava-lhes a cabeça, vestia-as e despia-as, fazia-lhes roupas, criava famílias, tudo. Uma espécie de Sims (que nunca joguei, aliás). Não me lembro de lhes contar histórias, mas também não me lembro de muita coisa dessas brincadeiras. Mas tinha a pancada das princesas, disso lembro-me. Desenhava montes de princesas e fatos de princesas. Fazia bandas desenhadas com princesas. Um dia descobri que tinha sangue azul."
Ana, vulgo galinhola (comentário)

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Eu uma vez tentei fazer roupas às minhas. O único tecido que encontrei foi o das fitas da pasta de fim de curso da minha mãe. Foi um desastre. Só consegui fazer cintos e cachecóis pirosos e aborrecer a minha mãe. Passava muito mais tempo a fazer legos e desenhar plantas de cidades, de casas, de escolas, de hospitais, de castelos e de bairros sociais."
Comentário Anónimo
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As minhas Nancy compradas em Vigo, têm todas o cabelo cortado. Cedo descobri que o cabelo das bonecas, ao contrário do meu que crescia de forma desmedida, não cresce :( Ainda hoje choro quando olho para as pobrezinhas)."
Comentário Anónimo
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Não sei... tenho algumas dúvidas sobre os malefícios dessas brincadeiras, sabes? Eu brincava com muitas outras coisas, mas nisso das bonecas não acho que fosse muito sofisticada. A minha avó é costureira, portanto passávamos o tempo a fazer roupinhas. Agora, a verdade é que as brincadeiras que mais recordo são as que fazia no campo, na eira, no meio dos rebanhos, das hortas, do milharal. A fazer cozinhados com ervas secas e batalhas de figos e azeitonas verdes. A saltar ao elástico!"
Ana, vulgo galinhola (comentário)
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há lugares da vida onde, por qualquer razão, nunca vivi" -> há lugares da vida onde, por qualquer razão, acho difícil algum dia vir a viver..."
dueto
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eu também gostava imenso de fazer cortes de cabelo vanguardistas nas minhas bonecas. mas também ficava um tanto ou quanto desapontada quando percebia que não voltaria a crescer."
claire lunar

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As minhas bonecas também tinham caderneta mas creio, que ao contrário das tuas, eram muito boas alunas, género Satisfaz Bem e Satisfaz Plenamente. Não me recordo com precisão como é que aferia os conhecimentos mas lembro-me perfeitamente que lhes estampava os nomes na testa, a caneta de feltro, para sempre recordar."
Carla de Elsinore
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As minhas primas também faziam muitas roupas. Faziam. Mas caramba o que vi foi quatro Barbies na mesa de um café, uma pilha de roupas de compra a serem desempacotadas e vestidas no momento e uma miúda que nem contente estava. O tom era "Ok, estas roupas são muito giras, mas agora que já tenho quero outras e o quanto mais depressa melhor [+ o rol das roupas desejadas]" e isto não era contrariado pela mulher que estava com ela. Se isto é normal tenho mesmo vivido noutro mundo."
Ana
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