segunda-feira, janeiro 24, 2005
A Morte, vista da Terra do Nunca
Estava a vesti-lo. A certa altura ficou muito parado, a olhar as caixas de Brinquedos de Outros Tempos, uma colecção de brinquedos de corda que mantenho em cima do roupeiro, longe do alcance dos seus gestos. Como são de lata evito colocar-lhe os brinquedos na mão, a menos que os dois brinquemos com eles. Ele, cá de baixo, bem os cobiça.
- Posso ir brincar com o cavalinho?
- Quando o pai for brincar contigo. Agora vamos vestir-te para sairmos.
- Tu não me dás aqueles brinquedos, Pai?
- Um dia dou.
- Quando?
- Quando eu não estiver cá. Para tu te lembrares de mim.
- Quando não estiveres cá?
- Um dia não vou estar cá, não é? As pessoas também morrem.
Só aí percebi que tinha posto pé em ramo verde. Os espaços tentam traduzir os tempos da cabeça dele a procurarem a pergunta seguinte. Estava desorientado, eu bem percebi. E eu não podia fazer, tinha de esperar pelo caudal de interrogações.
- Tu vais morrer?
- Um dia, daqui a muitos anos. Quando for muito velhote.
- E a mamã também vai morrer?
Não tive coragem para dizer que sim.
- A mãe não.
- E tu porque é que vais morrer?
- Um dia. Um dia vou ficar muito velho.
- Mas a avó Mina também é velhota. Ela vai morrer?
- Não basta ser velhote, Pedro. É preciso ficar sem forças, doente.
- O teu pai já morreu, não morreu?
- Já. O Avó Domingos ficou muito doente, muito fraquinho e morreu.
- Quando tu morreres vou ficar com aqueles brinquedos?
Estremeci:
- Vais.
- Eu nem preciso daqueles brinquedos para mim. É melhor quando nós brincamos com eles.
- Pois é.
- Eu nem sei dar à corda sózinho.
- Assim ajudamo-nos.
- É melhor assim. Fazemo-nos companhia.
Não voltou a tocar no assunto. Saímos para a festa de anos do Manel, um amigo da creche do ano anterior. Descemos a Damasceno Monteiro, até à Almirante Reis. Estou com pressa e os passos dele são liliputianos. Meto-o às cavalitas. Ele adora. Vai o caminho todo a mexer-me no cabelo.
- Estás todo contente, hem?
- Cá de cima é muito melhor.
- E estás-me a despentear para quê?
- Eu não estou a despentear-te, pai!
- Não?! Olha o meu cabelo...para cá e para lá...
- Estou a fazer festinhas...
- Agora isso são festinhas, é?!
- Pois são. Olha...Para ficares muito forte. Assim a morte nunca vai te ganhar...
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4 comentários:
Começou com a Callas. Elas gostam de ouvir algumas árias - desde que viram o Shrek (a namorada, a princesa Fiona, canta ópera). A certa altura, aperceberam-se de que aquela voz pertencia a uma pessoa que já morrera. Espanto! Começaram as perguntas. Está no céu? era muito velhinha? Sim, a tudo. "Mas eu vi meninos mortos na televisão!" - diz uma; "não, porque senão não vias o corpo, quando se morre as pessoas vão logo para o céu!" - diz outra. E depois: "quando chove, as pessoas que morreram não ficam molhadas?" e "como é que não caiem?" Ah, é difícil explicar, mas é só a alma que vive no céu, o corpo fica cá na terra, tem uma casa especial. E então...,"quando fores muito velhinha, tb vais morrer e ficas..., arranjo-te um quartinho em minha casa, mamã". "E vais ver-me do céu?" - Devo ver, pelo menos vou tentar. "Pelo menos quando não houver nuvens, não é?"
Com 4 anos. É uma delícia.
"Sissá, o que aconteceu à Avó Estela? Ela só está nas fortografias. Como vamos para casa dela?". O que aconteceu, pergunto-me eu... sei que morreu, mas nem eu sei o que isso é. Acredito que só morre em nós aquele que esquecemos. E a Avó Estela, será que já nos esqueceu a nós? "Mas onde está ela?", "Está sentada numa estrelinha, a olhar para nós", não me lembro de melhor sítio para se estar depois daqui. Pensei que a questão ficava por aqui, mas ela nos seus 2 aninhos vem ter comigo a chorar, "Mas Sissá, se a Avó Estela está na estrelinha, quem lhe leva o almoço? Ela deve ter fome...". Como lhe vou explicar que a Avó Estela se alimenta simplesmente do seu próprio amor por nós?!.
Num texto tão bonito fica mal "há Almirante Reis". Andei à procura de um email para tornar este reparo mais discreto mas não o vi. Porque acontece aos melhores.
obrigado. acontece, claro. e não só aos melhores, rs.
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