terça-feira, fevereiro 01, 2005

Eram dois amigos

Tinham-se conhecido na faculdade. Saíam de vez em quando. Tomavam um café. Viam uma exposição. Iam ao cinema. Jantavam num restaurante pacato. Ele gostava de comida japonesa, ela de italiana. Não sabiam bem porque eram amigos. Não falavam de sentimentos um com o outro. Não falavam de relações anteriores, de actuais, de mulheres, homens bonitos. Ela estranhava isso, ele não. E talvez não falasse, porque ele não o fazia. Uma vez testemunharam um pôr-do-sol. Em Lisboa. Num dia de frio, porém de céu limpo. E o frio era difícil entre eles. Porque desejavam enlaçar-se um no outro e o frio era um motivo. Nem sequer davam as mãos. Ele até as escondia no bolso enquanto falava, porque as mãos são sempre muito expressivas. E outras mulheres já lhe tinham dito isso, que as suas mãos eram ossudas e breves. E concisas. E como o poderiam trair? Por isso as arrumava nos bolsos. E fê-lo também dessa vez, enquanto passeavam em Belém, ao final da tarde. Quando estavam juntos o tempo parecia passar de maneira diferente, era o tempo de crescer uma árvore e ficar frondosa. Falava-se de infância, de momentos decisivos, a partir dos quais nada mais tinha sido igual. Ela contou: - Estava na banheira. Devia ter uns quatro anos. Estava cheia de espuma, gostava tanto de banhos de espuma, só que só tinha direito a um por mês, porque o sabão líquido trazia a minha tia quando ia a Badajoz e tinha de chegar para muito tempo. Ou então era o que me dizia a minha mãe. - Sim, parece-me que os adultos gostam de aguçar o desejo das crianças, se pudesses marinar na espuma todos os dias não creio que ao fim de uns tempos continuasse a ser divertido. - Pois é, ainda devem lembrar essa magia, o culto desse mundo imaginário, por isso, conspiram com o Pai Natal e com a Fada dos Dentes. E não lhes compram gomas todos os dias, não é porque faça mal à saúde, é porque é à sexta que os vão buscar à escola, nos outros dias é a avó, e vão vê-los com a língua toda vermelha dos rebuçados do Vampiro e com ovos estrelados em vez de olhos. - Devem estar a educar-lhes a libido. E a exercer a sua autoridade de pais. Riram-se os dois. Daquele riso que continua, mas os olhos não, os olhos só se contemplam e vão muito mais adiantados na expressão, talvez o riso só dure mais, para o olhar continuar pousado no olhar do outro. - Por falares em Fada dos Dentes, lembrei-me agora que tenho também algo sobre a infância para te contar. Ficaste no ponto em que estavas submersa em espuma... Ele ouvia-a. Desconversava sempre, descaía-se com uma piada, era o que fazia parecer. Mas ouvia-a, só não dava troco, porque as verdades no seu interior não sabiam o caminho cá para fora. - Sim, e não era só eu. Eu e a bicharada de plástico que eu levava para o banho, o clássico pato amarelo, os playmobil do meu irmão e alguns animais de quinta. A minha mãe estava a limpar a sanita, com direito a rolos na cabeça e tudo. Perguntei: “Mãe, como é que sabemos quando uma pessoa morre?”. Como se tivesse sido despertada do automatismo letárgico do acto da limpeza, não levantou a cabeça da sanita, mas parou o movimento circular do trapo. Não queria tornar o momento, um momento de revelação. Incomodava-a, nunca sabia onde havia de colocar as mãos. Recomeçou os círculos da bailarina “Então, é quando o coração deixa de bater.”. Lembro-me de ter levado a mão ao peito e de tentar sentir a batida do coração, e não encontrava, e voltava a colocar a mão noutro lugar, e nada de batida, a minha mãe tinha-se esquecido de dizer se o coração batia baixinho ou tão alto quanto o telejornal lá em casa. Comecei a chorar. Então se não batia estava morta. Uma menina de quatro anos morta na banheira com o pato e os outros animais da quinta e ainda por cima a chorar. A minha mãe ouviu o meu choro da cozinha e veio a correr. Tirou-me da banheira, enrolou-me na toalha e disse-me que não me sentisse assim, que não estava nada morta, porque quem fala e chora é porque não está morto. Mas foi só quando me ensinou a sentir o coração que eu descansei. Ele olhou-a. Tinha estado sempre a fazê-lo, e não tinha corrido risco nenhum, porque durante toda a história, ela não tinha estado ali. “Que ser intrigante!” pensava. A sua pele era tão volátil, tão transparente. Os vocábulos saiam da sua boca, como que embalados. Não teve a certeza se a história era bonita, se era a velocidade das palavras dela que tornava impossível o ouvinte escapar ao embate daquela memória. Ela pensou que não deveria ter contado aquela história. Qualquer dia ele saberia todos os seus segredos e a armas de uma mulher são a capacidade das lágrimas e os segredos. Depois só lhe restariam as lágrimas, mas esforçava-se para que o final não fosse assim tão triste. - Depois da tua história, a minha vai soar-te ridícula. A infância é poderosa, não é? As mães também o são, mesmo quando não estão presentes. - Mas eu quero ouvir. A Fada dos Dentes era uma deixa, certo? - Pronto, está bem. Ia no carro com o meu avô, ia levar-me à natação. E pelo espelho retrovisor começo a reparar que já lhe faltavam alguns dentes à frente. A mim já me tinham caído alguns e também já ficava com um ar reguila nas fotografias. Comecei a colocar a hipótese de me caírem todos ao mesmo tempo. E invadiu-me uma tristeza tão grande, tão grande, que nuca mais senti nada igual. O meu avô ouviu-me chorar no banco de trás e perguntou o que era, se tinha dores de cabeça. Respondi que não. Perguntei “Os dentes vão cair-me todos?”. Ficou sério, parou o carro na berma, virou-se para trás e disse-me, zangado “Escuta bem, na tua idade os dentes não caem todos de uma vez. E a seguir aos que caem, vêm outros. Daqui a dois anos já os tens quase todos. Na minha sim, os dentes caem e nunca mais crescem”. Além de não ter mais tocado ou pensado no assunto dos dentes, pensei que envelhecer deveria ser muito mau. - E é? - Não, mas estou a fazer uma poupança para uma prótese, pelo sim pelo não.

5 comentários:

Anónimo disse...

Não sei mais como vim parar aqui, mas o certo é que estou aqui. E gostei muito. O lirismo dos textos é contagiante. S 3 autores diferentes? N parece.O jogo de palavras é muito bom. Lembra Ro Druhens do Controversos.Gostaria de poder usar alguns desses posts no meu blog.Faço uma espécie de blog/revista literária pnde entremeio minha autoria com textos bons de amigos. Fica ai meu e mail para contato. Um abraço aos autores e parabens
vera do val/inquieta
rosebud.rose.bud@uol.com.br
www.rosebud.rose.bud.zip.net

JPN disse...

somos em tudo diferentes. em género, em tamanho, em cor do cabelo, em idade. mas não nos arrepiamos, creio, quando, num repente, nos confundem. abraço e quanto ao que vem de mim, sirva-se. as palavras são mesmo para isso, para serem lançadas ao ar.

Luís disse...

Um abraço a todos :)

Carla de Elsinore disse...

é por coisas como esta que não desisto. ;-)

Anónimo disse...

Medos. Seja qual for a idade eles lá estão... Também tive os meus, na minha infância, tenho os de agora e sei que terei outros no futuro. Já fazem parte da vida, aquela que começa e acaba.
Andreia