quarta-feira, fevereiro 16, 2005

Linha Quebrada

"as coisas nem sempre são assim tão lineares." esta frase deixada na caixa de comentários ficou em suspenso na minha cabeça. li-a a primeira vez há quase trinta anos. no livro de um homem que tinha deixado de ser padre. escreveu: " a vida não são linhas direitas. muitas vezes a força do tempo quebra-as e algumas, nem as reata. este livro apenas é compreensível por verdadeiros homens". lembro-me. estava na arrecadação, cá em baixo, sózinho. chorei, chorei, chorei. hesitei entre o avançar e o estacar a leitura. li. o meu avô, João dos Paus, antes de morrer, colocou um homem nos treze anos de meu pai. este padre de quem agora eu lia as palavras decisivas, fez-me assim também, com um livro, o projecto do seu livro, homem. um pequeno homem, o filho de meu pai. a história de meu pai é, como o de tantos miúdos pobres do norte do país, uma história de renúncia. contada na primeira pessoa. talvez apenas um episódio, como lhe chama - com uma superioridade moral que eu nunca seria capaz - a voz anónima na caixa do respirar. ou uma sucessão de episódios. porque sim, havia outros caminhos. Roberto, assim se chamava o padre no livro que meu pai projectara escrever, tinha outros caminhos. onde o estado salazarento se demitia a igreja cuidava e educava. pôde assim conhecer frança, itália, áustria, viver na suiça. e sem ter passado pelo ostracismo daqueles que lhe eram mais próximos, nunca teria aprendido o maior valor que me legou, a tolerância. vou mesmo mais longe: sem aquelas noites intermináveis no seminário, sem aquelas noites de suor frio, do levantar-se até à porta crescendo no seu desespero, agigantando-se na sua determinaçao, avançando pelo corredor de pedra onde a própria sombra o perseguiria mirrando-o tanto que quando chegava perto da porta do Director era já um personagem liliputiano, sem isso nunca teria encontrado o amor. naquele santuário de fátima, onde estava, encarregado de tratar do acolhimento dos professores católicos. numa dessas levas ía a minha mãe. sem isso talvez eu, na forma que me conheço, não estivesse aqui. isto sim, são episódios. quando penso nisto lembro-me sempre de Caeiro: "no céu tudo era estúpido como a igreja católica".

1 comentário:

Anónimo disse...

na vida tudo é estúpido, à sua dimensão. a não estupidez inibiria a luta pela possibilidade dos encontros, desencontros e reencontros. impediria a busca das respostas, dos porquês.