quinta-feira, fevereiro 17, 2005

O debate final: uma democracia sem hipóteses de cultura *

Podemos avaliar aquilo em que se transformou a democracia. Até no debater se tornou austera. Um único debate — um e só um, diriam os matemáticos — juntou à mesa televisiva os líderes dos partidos concorrentes com assento parlamentar. Não houve uma única referência à cultura, apesar de tanta preocupação com as condições de vida dos portugueses. As políticas sociais não precisam de molduras culturais — conclui, decepcionado. Eu pensava que sem a cultura não se fomenta a procura da elevação que está na base da nossa auto-estima, que nos devolve a ambição de sermos melhores, que nos permite rumar a uma identidade de orgulho. Ainda continuo a pensar. Mas, agora, sei que o pensamento dos políticos permite-se dissociar das questões culturais. É um pensamento sem cultura, à medida do que os políticos pensam do povo português. Renunciam à grandeza e à ousadia, achando que na sua caçada ao voto a eficácia é corresponderem à amargura do povo para logo e despudoradamente se proporem como salvadores. E, quanto mais amesquinhados forem no tratamentos dos assuntos, mais do coração dos portugueses poderão sacar votos. Porque, a ausência da preocupação com a cultura é sempre solidária do desprezo pelas questões da mentalidade e anda de mão dada com a falta de apreço pelo desenvolvimento da mente. Ora, as mudanças em que eu acreditaria — aquelas que a longo prazo poderiam realmente mudar o país — são justamente aquelas que seriam consequência de uma mudança das mentes e do conteúdo que mais espontaneamente as faz funcionar no bulício dos dias de trabalho: a mentalidade.Foi a cultura que nos arrancou ao instintivo e nos permitiu aceder ao invisível. Foram os conceitos — essas entidades invisíveis ao olhar dos olhos — que nos arrancaram à violência e à lei do mais forte, proporcionando-nos a hipótese de coexistirmos num espaço argumentativo de comum entendimento. Foi na cultura que evoluímos e que encontrámos a força da possibilidade transformadora do pensamento que sabe discernir e criticar, interrogar e adaptar-se, revoltar-se e projectar, criar e reformular-se. Foi na cultura que a educação encontrou o seu lugar e a razão de ser do valores dos seus projectos. Mas, e hoje? Vi um debate em que se discutia o futuro e, desse futuro, sei agora, ganhe quem ganhar as eleições, a cultura não faz parte. Seria por isso que chamaram àquele momento televisivo «o debate final»? Rui Grácio 16 de Fevereiro de 2005 [Este texto foi colocado aqui na caixa de comentários deste post do Luís, da Natureza do Mal. Os sublinhados são meus.]

1 comentário:

Anónimo disse...

«ESTÃO PODRES AS PALAVRAS....» de Jorge de Sena



Estão podres as palavras - de passarem

por sórdidas mentiras de canalhas

que as usam ao revés como o carácter deles.

E podres de sonâmbulos os povos

ante a maldade à solta de que vivem

a paz quotidiana da injustiça.

Usá-las puras - como serão puras,

se caem no silêncio em que os mais puros

não sabem já onde a limpeza acaba

e a corrupção começa? Como serão puras

se logo a infâmia as cobre de seu cuspo?

Estão podres: e com elas apodrece a mundo

e se dissolve em lama a criação do homem

que só persiste em todos livremente

onde as palavras fiquem como torres

erguidas sexo de homens entre o céu e a terra.

renovo o Abraço ao Rui Grácio (até ao "Campeão das Províncias", em "polindo o espelho")
maria toscano