quarta-feira, fevereiro 23, 2005

O Tempo das Cerejas

Acordei hoje com o frio daquela manhã magnífica sobre os Pirinéus, há muitos anos atrás. Despertar naquela altura ainda fazia parte de um sonho maior. Abri os braços, rasgando a massa de ar. Eu não sabia os nomes milenários da vegetação frondosa e, para ser sincero, desafiando o oxigénio minguante, o meu primeiro desejo foi um cigarro. Tinhamos parado o 2 CV junto do abrigo, onde pernoitáramos. A subir, numa bicicleta todo o terreno, pedalando ritmadamente, uma rapariga francesa com sardas que sabiam a cerejas, apercebi-me depois. Passou por mim com ar esgaseado, as faces escarlate. Parou três metros à frente. Desmontou. Chamava-se Milene. Eu naquela altura era bem mais magro e tinha uns ares de Belmondo que detestava mas que hoje daria tudo para retomar. Talvez tenha sido isso que a fez apear, uma versão lusitana de Pedro, o Louco. Avançou para mim, petrificado pelo meu sonho. Foi nessa altura que eu saboreei as cerejas escondidas na sua face. Disse duas ou três frases antes de descer em direcção a Tarbes, onde nos voltámos a encontrar e onde eventualmente terá duplicado ou mesmo triplicado a sua exígua conversação. Chamava-se Milene, tinha um pequeno estúdio onde escrevia poemas misturados com guache e tintas de cores raras, do tecto para o chão escorria um arco-íris como nunca vi e administrava os prédios rústicos que o seu avô lhe deixara e fazia tudo isso enquanto me comia como se eu fosse um morango silvestre. Aliás, só hoje posso desvendar o mistério dquela paisagem de morangos e cerejas que vou transportando de casa em casa sem nunca lhe conseguir dar uma parede que seja: não é uma natureza morta, vive em mim como nunca nada vivificou. Disse-me um dia alguém, ou aprendemos o que é a liberdade com uma mulher ou nunca a conquistaremos de facto. Milene ensinou-me a amar e a ser livre e eu pensava, sempre pensei, nunca a esquecerei. Uma coisa é não esquecer, outra é lembrar, reconhecer. Nem dei por ela quando me cruzei com ela ontem ao dobrar a Praça D. Pedro V e ao enfiar pela Rua do Carmo. - Belmundo! - Ouvi, reconhecendo aquela voz antiga, fechada a sete chaves. Era ela, Milene, pensei hoje enquanto despertávamos com o frio daquela manhã magnífica sobre os Pirinéus, há muitos anos atrás. Imagem retirada de Le Temps des Cerises

3 comentários:

Nuno Cruz disse...

Lindo lindo lindo

pi disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
pi disse...

http://letempsdescerises.blogspot.com

:)