quinta-feira, fevereiro 17, 2005
Quantas colheres?
Há rotinas que desencadeiam irremediavelmente flashes da infância. Seja o remexer plástico do insalubre saco que protege o pão a transportar-nos para os sacos de pão bordados, de onde o pão saía sempre fresquinho. Acontece também quando tenho sede. Consigo ver a minha avó a andar em passos rápidos e curtos atrás de mim e do meu irmão, com um copo de água na mão a perguntar se não queríamos beber água, que devíamos estar com sede. Nós em correrias, nós montados na bicicleta, ou a fazer estradas na terra e a brincar às cidades. O meu irmão era sempre sempre polícia. Eu costumava trabalhar na biblioteca ou no supermercado. E há uma rotina que não escapa a alucinação quando o prato da sopa tem desenhos. Seja peças de fruta ou padrões repetitivos. Era muitas vezes sopa de agrião o aperitivo dos jantares em casa dos meus avós, no Alentejo. Como eu não gostava daquela sopa. E para essa sopa só havia um prato.
- Avó tenho que comer quantas colheres?
- Tantas quantas forem necessárias para ver a menina.
E eu, de todas as vezes que tinha de aguentar com a sopa de agrião, levava avidamente a colher à boca. Como se desconhecesse a aparência da menina, sentada numa cadeirinha, com uma boneca pela mão.O prato era de esmalte branco com um rebordo azul escuro. E arrepiava raspar com os talheres velhos da gaveta da minha avó Lina no esmalte.
- Por onde andará esse prato?- perguntei à minha mãe.
- A última vez que o vi estava a servir de malga às galinhas. Sabes, com esse prato comia sempre a sopa toda...
As velhas manhas.
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2 comentários:
Fabuloso, S. Também eu me vi a raspar a sopa toda para ver a menina. Eu sei que isto parece assim esquisito, quase um elogio doméstico aqui do respirar, mas tinha de ser!
há momentos em que és muito lindo, amigo joaquim.
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