sexta-feira, março 04, 2005
A cada um a sua graça
Dei um salto até Alcantâra para ver o P. a mergulhar e nadar na piscina e depois voltei aqui, tinha na cabeça uma missão inadiável: escrever o grande drama contemporâneo. Nem sempre. Por vezes a sombra da face altera-se e preenche-se de audácia e destemor: vou escrever algo grande. Algo que na sua imensidão transborde de mim para o mundo que me inunda e encharca. Embora nunca tenha escrito nada de suficientemente grande para merecer o meu próprio reconhecimento é uma questão de tempo e de paciência. Estou no caminho certo, parece-me. À mão, à pena ainda não me chegou o fruto de tanto fervor mas já sou capaz de sentir a pele a latejar e os olhos a crisparem-se de obsessão, fechando-me totalmente ao mundo. Como imagino, acontecerá com todos os verdadeiros poetas, ensimesmados nas suas constelações de hipóteses sobre o maravilhoso desabrochar de um mundo em flor, em poesia. Poderei até nunca escrever nada, nem grande nem pequeno. Mas por esta bem aventurança de poder sobreviver à minha passagem pelas multidões em fúria amarela, pelo despejar incontinente do centro para a periferia, da periferia para o centro, por esta graça de poder enfim passar pelo mundo sem o ver, já terei o meu prémio, o meu afago, o meu consolo.