quinta-feira, março 31, 2005

Contar os Vivos

não estava a pensar escrever este texto, também não premeditei chorar compulsivamente a meio da noite, nem sentir o desmazelo de um gajo abandonado aos seus delírios, estava a pensar, estou imune a essas bizantinices, mas de repente olhei para o lado e um tipo às tantas da manhã com a tv a dar as marés vivas fica com vontades e ganas suicidárias e como eu sou um pouco como o bicho da seda, largo a minha pele e morre –e nasce- em mim um tipo com a minha cara e o meu nome, atiro-me de cabeça, atiro-me vertiginosamente para a minha morte ali a diante, vou confessar: -eu tenho medo de morrer, tenho um medo físico pavoroso de morrer, a morte a mim assusta-me, mas o que me parece ainda mais terrível do que esse medo de morrer é não te ter, a ti que te amo, desesperadamente, tão desesperadamente que na minha cegueira tão poucas vezes te consegui ter ao meu lado. se eu nunca tivesse amado eu dizia que não tinha nascido para o amor, resignava-me, mas porrâ, amei, e voltei a amar, e portanto tenho de confessar, amar foi um dom que perdi, não sei onde, nos teus cabelos, a meio caminho do teu dorso, no modo como lambi as tuas ancas, o teu sexo, beijei uma vez um sexo tão perfumado que me pareceu ser destino dele nunca se separar do meu desejo, não era um sexo indígena e por isso nunca lhe pude perguntar como é que ela fazia para conservar o seu sexo tão perfumado às desoras a que o beijei, o engoli, o trinquei, desde essa altura sonho um dia conseguir perfumar assim o meu próprio sexo, para que quem chegar a beijá-lo, a mastigá-lo, sinta logo no seu odor hospitaleiro o prazer que eu tenho ao ser devorado por uma língua afiada na minha glande, tenho um medo pavoroso de morrer, um medo físico, a morte estremece-me desde que sou canídeo, e juro-vos, a morte que temo não é a minha, essa dói-me de incompreensão, mas aquele temor que me abana as fundações é a morte da vida que eu não soube viver, e ter vivido com alguma sabedoria não é nada de muito espalhafatoso, é na calada do mundo ter feito alguma coisa para, sei lá para quê, por, por ti, o que me dói horrivelmente é a vida que eu não soube viver a teu lado. não estava a pensar escrever um texto-gangrena mas a hora tardia desfaz em mim qualquer tipo de auto comiseração. agora não há pensamentos grandicolentes. há um gajo e em seu redor, todo o vazio de que se soube povoar ao longos das seis décadas que arrasta consigo. tenho um medo pavoroso de morrer, de desaparecer da tua memória, de ser esquecido na rua onde moro, no meu local de trabalho, pela minha mãe, pelos meus irmãos e amigos, parece-me de uma crueldade impressionante pensar que eles suportarão uma vida sem mim, que passarei a ser uma história, uma mera história, um espaço ocupado numa fotografia, uma lembrança fugaz, um dia, de alguém, sei lá eu quem, às vezes também me lembro dos mortos mais incríveis, tenho um medo terrível de que não tenha já tempo de te encontrar, sei que o meu filho se irá lembrar de mim, mas a minha pergunta, será que irei ainda a tempo de te encontrar, de em ti me constituir memória irreversivel? escrevo sem poesia nenhuma, apenas com a dor, a dor isenta de morte minha, deste medo pavoroso de.

3 comentários:

blimunda disse...

olha, nem estou em mim. estou completamente rendida a este texto. li. reli. voltei a ler e quanto mais leio mais o acho a encontrar espaço dentro de mim a instalar-se, a instalar-se. foda-se, é só o que me apetece dizer. foda-se, porra, e uma série daquelas palavras mais ou menos censuráveis pelas gentes. mas juro-te que quando as palavras me escasseiam e o espanto me habita são só elas que traduzem a mina alma. por isso: foda-se, porrra! que belo, que belo...

Anónimo disse...

Acho que este momento deveria ser perpetuado pelo infinito, sem ruído, sem atrito, só assim, sem ser castrado por qualquer comentário.

Anónimo disse...

Quando a estrela nasce, há um sol que morre. Todos os dias, em todos os pontos da terra, nas várias horas que se seguem e se seguem e se seguem. Eu sei que ele volta e ele sabe que o vou olhar. Eu sei que quando morre para mim, nasce para outra. Eu sei de que me alimenta, e ele alimenta-se deste amor que sinto mas que não o sabe.

A morte, essa, assusta-me só quando me levanto sem esperança de um dia te ter. Je fais souvent ce rêve... não de uma "femme", mas de algo que ainda não sei o que é.