quinta-feira, março 10, 2005

Palavras cruzadas

Tenho desde o inicio dos meus dias um defeito de fabrico. Não sei bem onde. O mais estranho é que, mesmo não sabendo onde, com o correr do tempo aprendi a escondê-lo. A disfarçá-lo. Insegurança, medo, temor, pavor redondo. Escrever agigantou-me na noite dos meus demónios, dos meus tremores. Mas não posso viver dentro das minhas palavras, ninguém pode habitar única e exclusivamente os seus textos. E muito menos eu, que apenas escrevo por dilentantelismo. Saio assim à rua, como o mais comum dos mortais. Vou pela sombra da noite. Cruzo-me, sou cruzado por gente cruzada. E mesmo aí as palavras não me abandonam. E mesmo aí a maldição das palavras não me abandona. Como estou só no mundo reparo que de vez em quando escrevo desabridamente, ou pelo menos, tão desabridamente quanto posso. Isso já sou eu com as palavras, é um trato, um acordo, uma convenção intíma. As pessoas cruzadas agarram-se-me às minhas palavras e eu não digo nada, claro, porque razão escreveria se não fosse para que alguém se pudesse agarrar a elas. Também eu faço o mesmo com as palavras dos outros. Não é a palavra da salvação, mas com os diabos, alguma redenção hão-de transportar. Cruzamos palavras, cruzamos vidas e gente. Continuamos a escrever mas ganhamos um súbito peso. As palavras que escrevíamos para nós tornaram-se palavras que outros tornam suas. Claro que sabemos que se deixarmos de escrever outros virão tomar o lugar. Mas o que interessa toda essa sabedoria estática? A quantidade de coisas que sabemos e que, no momento de as sabermos, nunca as saberemos! Também assim com as palavras. Ganham peso, responsabilidade. Transformam-se até em palavras tristes. Só escreves palavras tristes, ouvimos lá do fundo do corredor. E não sabemos o que fazer senão a única coisa que é possível fazermos nestas circunstâncias: entristecermo-nos mais um bocadinho. Ausentarmo-nos. Há duas formas de irmos embora. Uma é indo. Ausentarmo-nos, partirmos. Outra, a de mandarnos a vida embora. Mandarmos a vida embora da vida que vivemos ou das palavras a que tentamos dar vida. Ausentarmo-nos das palavras. É nessa altura que aqueles que com as nossas palavras se cruzavam, mesmo sem nós sabermos, se ausentam também. Vão embora. Libertam-se. Pegam no vento e seguem à bolina, soltam as amarras. Sorrimos então. Voltamos à alegria das palavras. É preciso que a casa se esvazie para que, na sua plenitude, torne a ser uma casa. E isto claro, são apenas palavras. Palavras cruzadas.