quinta-feira, março 24, 2005

Plano A

Anna disse “Estamos num mundo de fadas, hoje!”. De fadas não, corrigi. De fantasmas. Fantasmas que se agarram à pele, adstringentes, encarquilho uns anos valentes na sua companhia. Como quero beber os segundos que passam por mim, decidi tomar posição. É dia de caça ao fantasma. Acordo, visto qualquer coisa sem me preocupar com harmonia nas cores e saio rumo ao supermercado. Aprovisionamento para algum dias, bens essenciais, papel higiénico, pão para congelar, coisas assim. Pondero pendurar um dístico na porta, como o dos hotéis, a apelar à importância do silêncio, portanto não incomodar. Decido que não, só iria atiçar a gula ou a ira dos vizinhos. A inacção também é eloquente. Encho uma garrafa de água de litro e meio e levo-a para a beira da cama. Visto um pijama velho com umas galinhas estampadas. Deito-me sobre a cama e descrevo mentalmente o meu plano: entrar no seu quarto, durante o seu sono (é verdade que pensei em outros crimes, mas como ainda tenho muitas memórias do sarcasmo dele, prefiro este e não outros). Cerro os olhos. Os punhos. Imagino-o com muita força, deitado na sua cama. Não lhe quero mal, só o quero morto. Agoniza silenciosamente durante um segundo. Duvido se sofreu mesmo ou se só despediu da vida. Nem lhe toquei, foi só a imaginação. Pensamos que o sentimento justifica tudo o que se viver. E o pior é que justifica isso e muito mais. Sobrevivência, lei cruel. Ou ele ou eu. No calendário estávamos no mesmo dia, apenas cinco horas depois do início da tarefa. Foi um bom tempo. Que morte escolheria para um fantasma de amor?

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