quinta-feira, março 24, 2005

Quando os armários se guardam nas novelas

"Estou certo que esse ritual diário, por muitos ainda preservado, ocupa um espaço nas histórias pessoais que tende a ser silenciado no espaço público. Mais silenciado ainda se esse espaço público assenta fortemente nas vaidades intelectuais e na estetização de um planar sobre a populaça. Caso do mundo dos Blogs." Bruno Sena Martins, Avatares de um Desejo Já deixei lá um comentário sobre esta questão que o Bruno levanta e vou tentar também contribuir para a discussão, aproveitando também algumas questões que surgem na caixa de comentários a este post. A propósito disso vou ser abruptamente sincero: não deveremos ter grande contemplação (nem pachorra) para a discussão sobre a verdadeira ou falsa intelectualidade. É de uma enorme arrogância e sou violento nos nomes que dou às coisas, é a minha forma de pode ser doce e brando connosco quando as incarnamos. Acredito sincera, inequívoca e piamente que quando qualquer ser humano se abeira de um objecto, gesto ou produto e assim, por este assomo ao objecto, ao gesto ou ao produto o torna expressivo - mesmo que esteja a fazer profissão de fé de um elitismo espúrio, ou coquete, ou alarve, ou populista e pancrácio - o faz para junto dele, ou à sua sombra, ou no seu interior sonhar, fantasiar e esperar de si. E esperar de si, dos outros ou do mundo em que vive que haja mais mundo, mais gente, mais eu e que nesse difícil entendimento do que é um mundo, a humanidade, nós mesmos, forjaremos uma ideia que é em si mesma luminosa e, pior do que isso, eu disse, pior do que isso, a única possibilidade de luz sobre a nossa vida. Não falo do mercado da arte, sobre o qual já escreveu impunemente Baudrillard. Digo que de um gesto, de um objecto, de um produto, dizemos que é expressivo porque, primeiro, o artista o criou como se fosse um armário. Ou se quisermos, como aquela caixa de que fala Steinbeck na dedicatória das suas Vinhas da Ira e nele guardou toda a sua vida passível de ser enclausurada e libertada num gesto, num objecto, num produto. Mas digo também que um gesto volta a ser expressivo porque sobre ele se encosta, se deita, se acasala, de amanceba, um espirito que naquele momento viu a sua salvação, a salvação da sua vida, do seu pequeno mundo, nesse dedicar-se ao objecto, ao gesto ou ao produto. E acrescento: não há nada neste trabalho de tornar expressivo um objecto - independentemente de ele o ser antes, ou seja, independentemente de ele ter nascido da mão de um artista ou do ofício e dos dias da humanidade ou daquilo que chamamos natureza - que corrompa, que destrua, que aniquile a força de um objecto, de um gesto ou de um produto artístico. Esse é o mistério delicioso da recepção na arte. Acrescenta, cria, leva pela mão, às vezes em direcção ao inferno, mas não destrói aquilo que no gesto, no objecto, no produto, é disponibilidade para ser acção da transformação. Não. Há uma disponibilidade para o objecto, o gesto, o produto artístico ser outro, que fica lá, permanentemente. Onde estará a cadeira onde tombou Salazar? Onde estiver, em que condições se encontrar, estará certamente surpreendida pelo seu lugar na história. Foi feita para ser uma cadeira de pau, provavelmente quatro pés, um assento e um recosto. Talvez nem exista mais. Mas a nossa ideia de poder encostou-se a ela e criou uma outra cadeira, não a cadeira de onde caiu Salazar, mas a cadeira onde Salazar tombou, ideia essa que é autónoma da cadeira que a gerou. O mesmo não se passa com a cadeira que Sam criou, aquela cadeira que simboliza a ideia da política como um plano inclinado. Quantas e quantas vezes sobre esse objecto do Sam já criámos uma ideia de cadeira que projecta ideias completamente diferentes. E a cadeira de Sam lá continua, simultaneamente enriquecida e disponível para novas interpretações. E se assim é, para quê classificar a recepção? Os verdadeiros e os falsos intelectuais, os populares, os burgessos, os incultos. A obra de arte é a única que cumpre o preceito bíblico da multiplicação: cresce, multiplica-se e resta sempre ainda a matéria visivel ou pressentida de onde se partiu. O grande negócio das seguradoras implodiria se ao trabalho de segurarem o transporte e a colocação ou o possível roubo de Guernica, ainda tivessem de assegurar a sua distorção, corrosão e desgaste provocada pelas centenas de milhões de olhares ignorantes ou incultos que já se abeiraram desta obra de Picasso. Mas o mais interessante, e foi esse desafio que tentei deixar no Avatares, é perceber uma coisa: que a obra de arte nasce porque o artista assume a sua actividade fantasiadora e que se essa actividade fantasiadora é irredutível à experiência humana, então a sua não visibilidade em todos os planos da actividade humano deriva de ela não ser assumida por todos da mesma forma. Sem dúvida de que não basta fantasiar para se criar . A criação em arte é um processo complexo de elaboração e expontaneidade . O que eu quero assinalar agora é que não se pode criar sem fantasiar. E que no fundo os artistas são uma espécie singular, por assumirem a expressão das suas fantasias, num mundo onde a maioria das pessoas se sente condicionada a menosprezá-las. A menosprezá-las e a desprezá-las. E no entanto as telenovelas, os ídolos no futebol, as revistas de coscuvilhice social, são, entre outros, os espaços onde o cidadão comum consegue fazer desaguar os seus sonhos e fantasias. E todos nós sabemos como essa grande celebração mediática que é a telenovela televisiva consegue colar o nariz de cada um de nós ao ecrân. O grande problema não é que esse grande ritual diário, por muitos ainda preservado, ocupa um espaço nas histórias pessoais que tende a ser silenciado no espaço público, como diz o Bruno. O grande problema é que ele só tem sentido enquanto ritual de uma actividade silenciadora do trabalho de fantasiar e imaginar, de desejo de ser outro, de milhões de pessoas em todo o mundo. Por isso é que a implantação no mercado das novelas foi feita com intelectuais e escritores de grande gabarito, como na TV Globo Dias Gomes - a cuja equipa pertenceu António Mercado, a coordenar actualmente o Curso de Teatro da Escola Superior de Comunicação e Educação de Coimbra - e a certa altura industrializou-se porque a procura era tão grande, queremos todos mais e mais sonho na nossa vida, que consumimos todos os sub-produtos. Não se trata de valorizar ou desvalorizar o produto telenovelístico. Trata-se apenas de deixar aqui uma ideia muito precisa: uma obra de arte, seja ela um espectáculo de teatro, um livro, um filme, uma música, uma pintura tem sempre dois momentos de existência: aquele em que é criada e aquele em que é recriada pelo público. E se esse primeiro momento, a obra artística, é inequivocamente um assumir da expressão das fantasias do artista, também o segundo será enriquecido quando diante de um público que assumiu a sua experiência fantasiadora. É aí o lugar do divórcio, é esse o lugar do encontro.

3 comentários:

Anónimo disse...

O que eu acho absurdo é falar de arte. Trocar ideias e pensamentos, sim, falar de, não.

JPN disse...

???

Anónimo disse...

quando falas, debitas a metro, quando trocas ideias assumes uma atitude activa e reactiva.