terça-feira, março 22, 2005

Sentido Contrário

Alguém me diz, andas a escrever coisas alegres. Há uns tempos tinha-me dito, estás pesado. E antes como hoje: a escrita anda no sentido contrário dos ponteiros do relógio. Não fosse ela um lugar de re-existência. Há uns tempos peguei num diário de campanha que comecei aos vinte anos, no decorrer de um esgotamento. Só eu sei o desespero, os medos, a ansiedade com que vivi aqueles dias. Tudo era outro, nada estava no sítio. Era muito novo para perceber que até nos podemos habituar - e conformar - com o facto de acordarmos e, reiteradamente, o mundo não estar lá, diante dos nossos olhos. Escrevi-a para me reconquistar e muitas vezes no meu quarto, que era o meu abrigo, temia não haver regresso. Hoje é com surpresa que pego nesses cadernos. O único indício da matéria sofrível que me povoava é o cuidado extremo com a letra. Nada há ali de descontrolado. Nenhuma evidência do desespero, do temor, da ânsia. Intriga-me (não) perceber isso. Se a escrita era e é o grande lugar de exaltação e de simultâneo encontro, porque é que eu me pareço tão tranquilo ao longe, na distância que vinte anos são?

4 comentários:

Anónimo disse...

Se pensas sim, escreves não. Acho que quem, como nós, se expressa pela escrita alimenta um faz-de-conta no papel. Como aqueles que se mostram alegres quando a dor é imensa. Que tanto querem sentir uma imagem diferente de si próprios que muitas vezes, inconscientemente até, acabam por acreditar nela e apenas ela conseguem desvendar aos olhos dos que estão fora.
Eu sou <> Eu pareço. Qual é real e qual é distorção?
Tenho sempre em mente esta imagem vinda dos tempos em que ainda passava pela Feira Popular. A Casa dos Espelhos. Afinal, qual destes que eu vejo sou eu?! Desisti, basta-me olhar-me reflectida nas águas por vezes calmas, por vezes conturbadas de um rio ou de um mar. Não pago, e a sensação é a mesma. Melhor ainda, enquanto que na Casa dos Espelhos cada um é só uma distorção, ao mirar-me na água em cada segundo, no mesmo plano, tenho acesso a milhares de eus.

estrela

Anónimo disse...

'Porque és outro' é a resposta que me ocorre quando me interrogo sobre quem eu era quando leio os meus cadernos antigos, cheios de inquietação, hoje tão relativa.
Vague

Knuque Mo disse...

a escrita que penso que gostas é aquela que aparecerá de forma catártica no palco!

blimunda disse...

ah, jota, mas eu acho que a resposta está mesmo na caligrafia, sabes? eu, que estava nessa altura na mesma barca acometida pela borrasca, olho as minhas sebentas e vejo que a necessidade de lhes imprimir uma ordem é exactamente o significado oculto do que lá está escrito. porque tenho dezenas e dezenas de coisas escritas, iguais, sempre com efeitos visuais melhorados, entendes? sempre mais limpos, sempre mais encarreiradinhos em letras bem desenhadas. a nossa necessidade de, no caos, nos equilibrarmos... misterious ways... beijos