sábado, março 26, 2005

Timing

Quantas vezes, eu, no quotidiano não estou verdadeiramente presente. Sentarmo-nos à mesa, comermos com eles, rirmos das mesmas piadas, sem querer até com a mesma intensidade. A família tem destas cobardias. E é quando estamos, porque muitas vezes não estamos, de manhã cruzamos no corredor as rabujices, vamos ao cinema sozinhos ou para fora passar o fim-de-semana. O tempo útil é cada vez mais esporádico, mas ao menos, não coincide com as quadras festivas. A tia a quem digo que é a minha preferida, porque é, porque está muito em casa e cuida dos netos. Digo-o enquanto aperto o seu corpo cilíndrico, rindo-se ela tímida, prontamente retorquindo “ora tonta, sou a tua única tia”, ficando muito feliz à mesma e contando aos parentes, nas minhas costas, que sempre teve uma relação especial com esta sobrinha. A família tem destas cobardias. Pensar-se no longe. Na avó de pele velha amachucada pelos tráfego intenso de cigarros a caminhos dos seus pulmões, da avó dos sapatos altos dos quais já pouco ouço o trote e dos quais me lembro. Sei que vai morrer, que é possível. E lembro-me, e telefono-lhe quando me lembro, sempre menos vezes do que as que me lembro. Contava-me da última vez que a vi, há dois dias que lá estive, a ocorrência de uma dor de cabeça. Tinha-lhe simultaneamente surgido no campo da visão direita uma sombra “como um aranhiço que segue os objectos”, que estava preocupada “não tanto com as consequências”, mas mais com o que aquilo a arreliava. Insisti que fosse ver o que era, que fosse avaliar a tensão arterial. Ainda não lhe telefonei. Preparada mais que os outros para as nossas mortes, é por viver mais à frente do que o conveniente. Mal o meu. A textura não sou eu, mas é como se fosse.

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