domingo, março 27, 2005

O Talento na Mediocridade

Ando há uns dias para escrever este texto mas não sei se já chegou o tempo de o escrever. É preciso algum tempo ou então, ao invés disso, é preciso que nenhum tempo se interponha entre a ideia a a sua escrita, para que um texto onde um gajo se expôe na sua gangrena de bicho, de cão, não resulte num pífio exercício de auto-flagelação. Estou mais uma vez inclinado sobre o ecrân, numa pausa da concretização da ideia. É fácil imaginar como estarei aqui, ou como estaremos aqui. Um dia deveríamos talvez reflectir um pouco mais sobre esta relação da atitude do corpo com aquilo que escrevemos aqui. É fácil adivinhar como é que cada um de nós escreve, como é que cada um de nós lê. Da mesma forma que o dispositivo do software que suporta o Blogger condiciona o nosso trabalho expressivo, também o dispositivo tecnológico do hardware necessário para que o concretizemos implica uma atitude corporal que é (de)limitadora da expressão que fazemos. Estamos aqui sentados, num fluxo em que escrevemos exteriorizando, em que lemos o que escrevemos, interiorizando o que exteriorizámos. O individuo reclinado sobre si mesmo suspende a sua ligação ao mundo e é nesse instante de fechamento que a sua abertura ao mundo acontece. Poderemos até pensar que é natural. Mas não é. Nunca foi. Nem quando a escrita era em papiro o era, quanto mais agora que o processo de fabricação do texto se deixa ver na sua reflexividade sobre o sujeito que levanta a mão e escreve. É o tempo que ele dura sobre o teclado e sobre o ecrân. Um dia deveríamos talvez reflectir um pouco mais sobre esta relação da atitude do corpo com aquilo que escrevemos aqui. [imagem de Susana Paiva] Agora não me apetece. Ainda não cancelei este voo planado sobre as escarpas, sobre a minha memória. Este texto começou num outro texto, alheio, num gesto tremendo de revelação. É no silêncio dos links, numa hipertextualidade silenciosa mas cúmplice, que com ele me relaciono. Se um dia pudessemos deveríamos escrever sempre assim, com a prosa a latejar. Já que não conseguimos viver latejando, ao menos que sangremos quando constatamos a insuficiência da nossa vida. Aguardo aqui pacientemente a chegada do texto e ele não vem. Não era por mim, que o tenho, sem forma final, sem formatação, na minha cabeça. Era por vós. E também por mim. Talvez assim pudesse minorar a profunda mediocridade que tem sido a minha vida. Não sei se sentem isto, ou se o sentem assim, mas é exactamente assim que eu vejo as coisas: há no mundo suficientes criaturas, cabrões e filhos da puta - não falo de imbecis, de néscios ou de pacóvios, esses tem a luz e a bondade possíveis - para que um gajo medíocre não possa deixar de sentir a obrigação ética de devolver à vida, ao chão, à terra, ao ar, a vida que não consegue viver. Não estou aqui a fazer nenhuma apologia do suícidio. Não precisamos de nos matar para pensarmos em como seria melhor o nosso mundo se cada um pudesse entregar ao tempo de todos , aquele em que não viveu, não dançou, não. Se pudesse devolver ao tempo de nós todos a sua vida quando ela se tornou num enorme, gigantesco e terrível falhanço. O grande problema do suícidio como ética da existência é que é incerto que o tempo que devolvessemos fosse ou não utilizado da melhor forma. A probalidade de que o tempo da nossa vida em que honesta e humildemente chegássemos à conclusão de que não andamos cá a fazer nada fosse empregue para criar um monstro, um canalha, uma besta, seria tão grande como o seu contrário. A vida é uma mensagem que não pode ser devolvida ao remetente, a única lição que podemos extrair disto é que a ética é um negócio à revelia de deus ou de qualquer princípio gerador da vida, a ética só existe como emanação do e para o nosso mundo. E a minha vida, toda a minha vida, tem sido de uma mediocridade compungente. A minha sorte é viver num mundo onde se tem generalizado e banalizado a mediania mais medíocre. Talvez isso se deva por que compreendemos que deixámos de ter alguma possibilidade de futuro histórico como espécie quando fodemos este universo até ao tutano. Sou tão medíocre, tão labrêgo e tão campónio que nem necessito do linguarejar grosseiro, alarve, destemperado deste inusitado fodemos para assinalar a minha boçalidade confrangedora. A minha única safa são estas plataformas mediáticas onde escorregamos de um lado para o outro e como a mediocridade é um mal geral, podemos festejarmo-nos uns aos outros. Baudrillard disse-o: digo que sou medíocre, mediano, alarve, mas como o faço para uma plateia de alarves, medíocres ainda me arrisco a ser condecorado pela minha genial mediocridade. O mais engraçado é que neste momento muita gente estará, na sua tremenda amizade e comiseração pelo autor, à procura dos sais de fruto ou de espirito para mos remeter em express mail, convictos de que esta prosa é rescaldo pascal. Não. E também, não é em dias como este que as pessoas se suicidam. Na minha mediocridade absorvente estou muito contente comigo mesmo. Há apenas uma malapata: independentemente do enorme talento que na mediania mais medíocre em que transformámos a nossa vida nos incensamos mutuamente, somos os reis da lata, do latão, do pechibeque. À pouco vi a Júlia Pinheiro na televisão. Lembro-me, estava então na Praça Pública, de a ter visto vir de uma conversa com o Rangel, quando a desafiaram a apresentar a Noite da Má Língua. Sentou-se na nossa mesa, estava contente, esperançosa, vais arrasar dissemos. Dez anos depois o que vejo eu? Uma Júlia com os cabelos espetados como se tivesse sido electrocutada, com as mamas salientes, muito apertadinhas uma contra a outra no decote justo, a dizer à Lili Caneças depois de um discurso desta sobre não sei o quê que sim, que comungamos no mesmo desígnio, e eu a pensar, e eu sem conseguir deixar de pensar na única coisa pensável, o desígnio, o nosso desígnio de uma vida medíocre, comungamos no mesmo desígnio, o nosso desígnio de arrasar, e não tenham pena dela, é igualzíssima a nós outros, todos nós arrasámos, arrasamos. Tudo em nós é miserável e sem apelo. São medíocres as nossas casas todas apertadinhas umas em relação às outras, tão encostadas e estreitinhas como as vidas que prometemos lá viver. As nossas casas onde nunca podemos estar sós, as nossas casas onde cada vez mais, morremos de solidão precoce. São medíocres as nossas famílias, as nossas festas, os nossos deuses. E tudo o que não é mediano tem um desígnio, velozmente à procura da sua própria mediocridade. São medíocres as nossas economias, a nossa justiça social, as nossas democracias. Somos medíocres no modo como amamos, como parimos, como pensamos. Somos tão medíocres que tudo o que fazemos, mesmo aquilo que parecia vir a escapar à mediocridade vingente, torna-se num panfleto de um pretensiosismo medíocre. Inventamos soluções falsas para problemas verdadeiros e deleitamo-nos a construir problemas falsos para as verdadeiras e únicas soluções que temos nesta vida. A nossa vida medíocre. Os dias da nossa vida medíocre. Escrever um texto medíocre sobre a mediocridade da nossa vida. Nós que nos condenámos à mais ininterrupta das mediocridades, poderemos, eu sei, a pergunta é terrivel, libertar o mundo dos nossos filhos do desígnio de uma vida medíocre?

4 comentários:

Anónimo disse...

Então e as tais coisas alegres que andavas a escrever? Cá por nós, voltaste a ser mais franco.

Anónimo disse...

Coitados de nós, os pobres de espírito. Vida eterna aos que lutam por sair.

JPN disse...

não só, jpb. há gajos a trabalharem já no hardware...rsrs...

Anónimo disse...

descobri agora isto, sem querer.

e tempo para ler todo este mundo, onde está, pergunto. (me)

fica a curiosidade.

tantos mundos que existem...

fica a curiosidade.