domingo, abril 17, 2005

Avaria

Ele gostava de comida japonesa, ela de italiana. Não sabiam bem porque eram amigos. Há pelo menos um ano que não dirigem a palavra um ao outro e nenhum deles sabe muito bem porquê. Talvez tenha sido aquele quarto de pensão, o néon a piscar na janela deles. A última vez que se viram, tinham ido jantar fora da cidade e o carro empanou num lugar ermo, à vinda. Ela lembrava-se que a um quilómetro havia uma localidade e devia ser verdade porque as luzes se avistavam. Percorreram o caminho, embrulhados nos casacos, em fila indiana, de frente para os escassos carros que iam passando. Estava uma noite fria. E o frio era sempre doloroso. Difícil entre eles, pois desejavam emaranhar-se nos braços um do outro e assim havia um motivo. Dois cúmplices na noite que nem sequer davam as mãos. Ele até as escondia nos bolsos enquanto falava. Outras mulheres haviam comentado as suas mãos expressivas. Só as via ossudas e breves. Fê-lo também nessa noite fria, evitando traições não verbais. Chegaram e tudo calmo, havia um café, já fechado. Do outro lado da estrada, uma pensão exibia um letreiro néon que contagiava o silêncio com um ruído exasperante. Um carro passava de vez em quando, deixando o ambiente inquieto. Entreolharam-se. Ele disse que estava frio. - Com o carro não vamos conseguir sair daqui hoje. Já é tarde para ligar a quem quer que seja. Vamos entrar? - Sim, estou a gelar- anuiu ela. Um cheiro a desinfectante invadia as narinas e já não saía. Ao menos isso, pensaram eles. Ao menos não cheirava a leviandade, a beira de estrada, a histórias ocasionais. O quarto dava para o asfalto e ouvia-se passar um carro de vez em quando, que os deixava em sobressalto até ao próximo carro. Ela despiu o casaco e meteu-se na cama. Ele imitou-lhe os gestos. Não chegaram a acender a luz. Sentiu a respiração dela ofegante, de costas para ele. Chamou-a. Ela virou-se. Não estava frio desta vez, só desta vez. Procurou-a com os lábios, encontrou-lhe o nariz, desceu a medida certa. Mergulhou no vapor da boca dela por tanto tempo quanto demora uma árvore a crescer e a ficar frondosa. Só isso, um beijo. A noite durou um beijo. De manhã o carro pegou e voltaram à cidade. Não se sabe se o fim foi triste, porque nunca mais se falaram.

10 comentários:

Anónimo disse...

consegues ser tão pesado por vezes :(

textura disse...

ei, correcção, não se vê bem que foi uma mulher quem escreveu isto?
;)

Anónimo disse...

não há nada de tão frio e de tão ocasional como o cheiro a desinfectante barato. estranho como cada nariz cheira o que mais lhe convém.

Anónimo disse...

mulher ou homem, eu falava do autor

JPN disse...

era disso que a Textura falava, da autora. Textura, sorry o peso involuntário. Gostei particularmente de saber que o vapor de um beijo demora tanto no tempo de quem beija.

Anónimo disse...

hei! o peso não era teu, de que te desculpas? o peso era do texto e do autor, mulher ou homem feito Textura.

Anónimo disse...

Há uma certa dose de mau hálito nesta história, não?

Anónimo disse...

engraçada a forma como se assume (ou exclui) ser homem ou mulher numas coisas e noutras colocarem-se tantos problemas. lembro-me de um post anterior, em que se falava (não me lembro se H ou M) da razão de ser dos dias da mulher. há coisas bonitas que se podem dizer sobre isso. sérias e bonitas.

textura disse...

Pois, dou a mão à palmatória se pareci ter falado a sério. Mesmo assim ser mulher no amor, ser mulher contando histórias é diferente de se ser homem. Ser-se feminino, podendo ser-se homem e vice-versa. E sabemos como é, o texto transpira. Fechamos os olhos e conseguimos ver alguém a escrevê-lo. Um homem ou uma mulher. No fundo tanto faz.

maresia disse...

o que não-tanto faz é a tua postura bonita na vida. até mesmo perante o que "tanto faz".