terça-feira, abril 05, 2005

Dou-te o meu Nome

é meia noite, é muito cedo na minha hora. deito as mãos sobre a boca, sobre a cabeça, sobre o tronco, nestas alturas as minhas mãos enormizam-se e deito-me sobre a minha verdade, a minha vida, hoje foi um dia terrível, um daqueles dias que nunca mais começam, apetece-me ir devagar, soletrar as palavras com cuidado, pedir-vos encarecidamente para levarem os putos para o quarto, na enxurrada enxotem também os puristas, os sofistas, os agnósticos, os crentes, os lentes, os piedosos, os merdosos, aqueles que sabem de mais, ou que sabem de menos, pode ser preciso, pode não ser, muitas vezes quando esta corja desarreda é que resolvo ser doce, brando, meigo, largando palavras como se fossem rosas, acima de tudo, vão à vossa vida, os restos que vêm sobre o balcão são apenas isso, restos espalhados sobre o balcão, andei à procura do livro da susan sontag em que ela luta contra o cancro que a consumiu da única forma com que sempre soube lutar, pensando, e venceu-o mas mesmo que não o tivesse vencido, deixou-nos um livro onde mostra que somos tão medíocres face à nossa representação da morte, claro que eu não estava a fazer bluf, quero mesmo ficar quase só, contigo, tu também M, escreveste na terça-feira, dia 29 de Março de 2005 que, contra tudo o que tinha sido o teu hábito, a tua fé, a tua teimosia, a tua destemperança, querias morrer para que a dor parasse, vou precisar também das tuas palavras para insistir mais uma vez, não, não é para reiterar alguma coisa, apenas para insistir, insistir mais uma vez, re-existir, como o José Cardoso Pires no seu ir e vir, tenho ouvido nestes dias falar muito na morte, na puta da eternidade, dessa malsã ideia de que sobreviveremos ao nosso delírio existencial, a mim deus não me incomoda, tão pouco o céu, o inferno, nem a própria mirra, o incenso, a única coisa que me dói e, sem ironia, dói-me de morte é ter de desfazer um a um todos os castelos de ar que fui construindo ao longo da minha vida, eu que teria sido muito mais feliz, muito mais contente e alegre se tivesse sido apenas o pó, a molécula, o ácido nucleico em que, insistem me hei-de tornar, se eu tivesse sido apenas esses imortais genes que me conduziram aqui ao centro dessa dissidência, teria sido muito mais exultante, muito mais criança, muito mais felicidade e mansarda, trocaria assim todos os instantes desta mortalidade bastarda, ressabiada com o privilégio de existir em que, segundo a segundo, fiz da minha vida um cavalo de batalha; há moinhos de vento espalhados pelo dorso daquela encosta magnífica que desce até ao mar, até ao mar, é uma e dois minutos da manhã, eu estou só, nunca saberei verdadeiramente de que cor são as ondas, do sabor da espuma, ou sequer, da força de uma rebentação, nunca saí da minha terra, talvez por isso me aproximei da tua boca, de todas as bocas do teu corpo e em cada uma delas inquiri sobre a espuma, a rebentação, a cor, perscrutando o eco, o ruir das paredes húmidas, estou a cansar-me por dentro ouvi-te dizer, recuso-me falar sobre a ideia da morte de algum de nós, e nenhum de nós nesta vida surpreendente e jactante pode, na sua sabedoria, dizer onde está a fila, o primeiro, ou o segundo, ou até quem apaga a luz, somos todos intrusos mas não há intrusão, há uma viagem no entretanto da imortalidade molecular em que emerge o tempo necessário para que uma pessoa tenha a oportunidade de ser uma pessoa, porque, sempre aprendemos que a única realidade tangível são as pessoas, ou outros, o outro,tudo é urgente, tudo carece, na sexta feira telefonou-me uma amiga minha, uns vinte anos mais velha do que eu e que há uns treze anos atrás nos fez sofrer porque uma das muitas mortes de que a doença é capaz de assumir se alojara no interior do seu corpo, o processo seria fulminante, disse corpo, o espirito sempre negou a evidência molecular, recorreu do átomo, não acreditava em deuses, acreditava no teatro, o mundo era nas suas mãos de artesã, um espectáculo, lembro-me de uma vez ter ido com ela a uma comunidade de toxicodependentes, independentemente do sol a bater na gente, no soalho, estava tudo escuro ali dentro, a doença, a ressaca, a impossibilidade, eles explicavam porque é que não podiam, eram crianças grandes a explicar as coisas pequenas que lhes tinham acontecido, ela, que era a única que tinha a morte certa, previsível marcada dentro dela, sorriu, lembro-me como se fosse hoje porque sorri com ela só que antes, estremeci, ela sorriu e sorrindo explicou que sabia que ía morrer e o dom que isso tinha sido na sua vida, telefonou-me na sexta feira, treze anos depois, o que queres, perguntei, sabes de alguém para fazer um atelier de escrita poética nos museus aqui do outro lado, sei claro, dá-me o número, dei-lhe, o meu, ela escreveu sem se dar conta, e agora diz-me o nome, JPN, ah! valente!, respondeu do outro lado, é sempre o meu número que lhe dou quando ela me pede alguma coisa, seja para dizer um poema, para falar num debate, para fazer um ateliê, para pintar o mundo no avesso da cor, será sempre o meu nome que lhe darei. o meu nome de gente verdadeira por dentro e por fora, o meu único nome que eu quero que se ouça quando desaparecer no fio acidentado do horizonte.

1 comentário:

Anónimo disse...

era tão mais fácil, poder viver sem pensar no fim, talvez apenas pequenas imagens aqui ou ali. soubera eu o dia em que vou morrer e seria tão mais fácil andar por aí vivendo com a certeza de que havia mesmo uma única e grande certeza.