domingo, abril 10, 2005
Em demanda do homem novo
depois de amabilidade, apetecer-me-ía agora escrever um segundo texto brechtiano. é o pudor que me recolhe, que me diz, ainda não, o pudor de um incréu poder mesmo assim escrever um texto sobre a sua crença no futuro da humanidade, na possibilidade tangível e real da nossa vida ser melhor hoje
do que ontem, eduquei-me
para acreditar, adestrei-me, ano após ano, para continuar, para resistir, o mundo não é o melhor dos lugares,
é um lugar, a minha fé nele foi-se degradando, degradando, e não é tanto as pessoas, nem os nossos líderes, tudo isso poderia ser apenas febre do momento, é
mais o estado do mundo, o mundo físico, o mundo onde nascemos e do qual fazemos parte indissolúvel mas do qual teimamos em divorciarmo-nos,
estragando-o irreversívelmente, não acredito em deus mas temo vir a descobrir que ele afinal existe,
não o deus dom e principio de todas as coisas, mas o deus fim de todas as cousas, não só as humanas, na nossa procura de deus faremos rombos significativos na paisagem.
por isso neste momento brecht talvez voltasse a ser precioso para me ajudar a
dizer aqui é possível viver com dignidade, eu sei,
é contraditório com muito do que aqui escrevi, muito do que aqui escrevi é contraditório com isto,
navego na contradição dos meus dias, noites, escavar a terra,
escavar a terra sempre, fizeram-nos assim
infatigáveis,
fomos feitos do cansaço, da teimosia, a eles tornamos,
gesto após gesto,
o que eu quero mesmo é livrar-me deste egoísmo, deste escrever sobre mim, deste exaltar-vos a escrever sobre vós,
quero o silêncio.
quero o nosso silêncio. quero que encaremos com extrema simplicidade este desígnio de viver dia a dia. que
voltemos a casa, às nossas casas, às nossas mulheres, aos nossos filhos, aos nossos ofícios, às delícias da carne e do espírito, às indústrias do lazer e do prazer, aos nossos ginásios, aos nossos anjos da guarda e sobretudo,
aos nossos mitos, ou seja,
à nossa solidão. é dentro do homem, por dentro da sua carcassa retorcida e avinagrada pela distorção do tempo ácido a que nos fomos dedicando, que
encontraremos o homem novo, a terra prometida.
encontrem-no por mim que dele estou tão distante. suprema contradição: encontrem-no por mim que, desse modo de o procurar, na sua incansável demanda, estarei tão distante. procurarei-o ainda mais um pouco, no sempre que me couber, dentro daquele feixe luminoso a que chamamos, como quando falamos das estrelas e dos planetas, solidão própria.
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1 comentário:
interlúdio em forma de Pessoa
fumando inexplicavelmente versos
é que me conheço fumo
dos grandes invisíveis humanos
conheço a névoa das substâncias
mas um corpo líquido é que penso
tenho desejo de mim ao passar pelas ruas de ontem
queria ter-me entrar por mim como um verso
uma espada consciente de carne
que me dissesse que existo e sou agora
o vazio mais visível dos meus sonhos
é dessa fome que traço um caminho bífido
mais ou menos raso de raiz angústia
quando ardem versos e caminho pelas ruas de hoje
tocando apenas nos gestos avenidas de ontem
como se reconstitui um corpo de amante perdido
de pé nas escadarias dos sonhos mortos
tenho um essencial desejo dessa natureza
viva e morta que ubiquamente é eu
fumo-me para me encontrar entre essa neblina
entre a circunstância dos dedos e das rugas
consumo-me burlescamente ultraliricamente
o que me sai do genital celeste
a minha vida a existir é um vício textual
uma vontade de partículas incendiadas
pelo cego sentido que comanda tudo
(à porta do azul o anjo chamou-me
com contrários sentou-me num livro de vidro
abriu-me o livro pelas costas sussurrando
«entra no livro e come»
o mistério das asas arde na garganta
como o pó que a viva palavra levanta
o amor chegou vinha duma ópera de gluck
entrou-me pelas imaginações com sede
bebedor de distâncias e deixou-me depois
da sublime carne das fendas interiores
um corpo apenas é este o meu caminho)
tenho passado assim o coração dos becos
lembro-me do prazer da roupa suja
da dor íntima e quente de eu ser usado
pelo meu próprio sonhado outro
minha vida verdadeira saudade de pedra
onde eu sou maximamente nada
a cruz a morte e a salvação
ler a minha vida assim tão medievalmente geométrica
tão em tesão essencial da morte
dá-me o prazer carnívoro de me escrever
de me deitar rasgado pelo texto fora
comendo os braços de mágoas e a pedra em sangue
numa brutal obsessão mística por mesmo mim
escrevendo-me noutro corpo que me leia
alimento-me da minha própria fome
grito-me engenho-me
trituro-me em todos os versos
na carne abandonada de mim eu tenho fome
no rosto dividido de mim eu tenho fome
do corpo percebido de mim eu tenho fome
mas é desta avenida eu que caminho que me alimento
neste acto pétreo gnóstico de mim este
masoquimisticamente sobre-viver-me
é este o meu ciclo alimentar e assassino
essa palavra de eu me morder na boca
na carne final de que me vivo
na língua de pedra dos grandes invisíveis
eu como o meu total milagre
biofágico vivo
In Biofagia, Quasi, Abril de 2003.
Pedro Sena - Lino
ó jota, olha o que eu descobri para te deixar aqui!... bj
pós de escrito: se encontrar o caminho eu mando-te um mail. ou uma sms, tá?
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