domingo, maio 29, 2005

Um coração e quatro pernas *

Era o que eu mais queria ter, um coração que escapasse aos canônes e compêndios da medicina, que corresse veloz como só fazem os quadrúpedes quando sentem o vento no focinho, perdão, nos ventrículos, que se apoiasse em duas pernas na coluna enquanto escrevia um livro com as outras duas, que sangrasse apenas uma vez por mês num ciclo bem definido e regular. Que tivesse de comprar calçado aos pares para sapatear dentro do peito. Nenhum dos sapatos seria do mesmo número. Um coração com quatro pernas tem muitas vantagens e só por maldade, escárnio e inveja pode ser qualificado de malformação. Tem o mesmo feitio visceral dos outros corações - não aquela forma certinha e estilizada que anda na boca e no traço de toda a gente, mas uma cara aguerrida de tripa primordial -, e bate ao ritmo das veias que se apoiam nele como uma teia de aranha em redor da presa. Os fios de sangue não sabem que este coração tem quatro pernas e alimentam-no e parasitam-no exactamente com o mesmo fervor. Mas o coração sabe ao que bate. Sabe que se lhe cortarem as pernas tem outras duas. Suspeita mesmo estas lhe poderiam nascer por todo o lado, num arremedo de polvo que desliza por todo o mundo e a todos os seres e coisas toca, como quem dança uma milonga perdida num país estranho. Um coração com quatro pernas consegue dançar o tango enquanto segue o seu fado. * forma argentina de descrever o tango aos forasteiros

3 comentários:

Anónimo disse...

Sim, magnífico. Lê-se e consegue-se mesmo respirar com o coração inteiro! Enfim...dá força ler coisas assim. obrigada!

maresia disse...

obrigada.

PARTILHAS disse...

1 coração, 4 pernas, uma dança... quantas pessoas envolve?
Uma? Duas? Ou três?