sexta-feira, junho 24, 2005

Falando de lugares

Falamos de lugares. Os lugares são locais inexplorados onde nos projectamos. Sítios onde nunca fomos. E nos almejamos. Eles não existem, existirão. Não há lugares pretéritos. O passado dos lugares destitui-los-ía da sua condição, locais assim reinvestidos na cartografia turística. Sítios. Locais.É por isso que os lugares não se mostram. Não é por teres perguntado, é porque há algo neles que resiste à demonstração. Falamos de lugares e logo aí estabeleço um programa. Penso em comprar um lápis de carvão. Em parti-lo em dois. Perguntas-me porque não compro dois, e eu respondo-te com a única simplicidade que conheço: se assim o fizesse, ao parti-los, teríamos quatro e com quatro sobrar-nos-íam lugares. Temos de ser ainda dois nos lugares onde nos desejamos. Há que partir, nem que seja este pequeno lápis de carvão. Escreveremos então nas paredes as frases, os poemas. Começaremos pelo corredor e iremos até à sala. A vantagem de termos paredes largas e altas e infinitivamente compridas é que poderemos escrever até que a manhã se levante e não teremos sequer começado a escavar a poesia que há em nós. Porque a poesia é um lugar indemonstrável. Habita em nós de relance e no mesmo instante, já não está aqui. Nós somos aqueles que desbravaremos o sentido. Que roubaremos o significado das coisas. Quando se fala na urgência das coisas é isso que se quer dizer. A urgência das coisas, a urgência de tudo o que existe, não é a pressa dos lugarejos, das ruas e vielas. O que é urgente não tem pressa, a sua ânsia é lenta e vagarosa. A sua ânsia é lenta e vagarosa. Colhe-nos no caule, sobe-nos ao sexo e transforma-lo em flor. Há uma flor plantada no sexo do homem e uma flor escavada no sexo de uma mulher. A ansiedade é o processo de fazer de cada homem e de cada mulher uma flor desabrida sobre os campos que povoaremos quando formos capazes. Capazes de quê?, perguntas. Capazes de tudo, respondo. Falamos de lugares. Passei pela tabacaria do bairro e pedi um mapa-mundi. Ao lado, numa loja dos trezentos, comprei setas de um jogo de atirar ao perto. Vamos atirar ao longe num jogo de lançar ao perto. É isso o paradoxo. Dizer-te que os lugares não se demonstram e fazer disso um tremendo exercício de demonstração. Falamos de lugares. Falamos de lugares porque eles são a cartografia do sensível que há em nós. Nós, não eu e tu, nós, também é um lugar. Projecto-me nesse lugar, a sua diferença em relação a todos os outros é que não têm ainda demonstração cartográfica. Mesmo com esta nossa ânsia comum de reduzir a nossa vida a escrito, a topografia vem a caminho mas chegará depois ao lugar de nós. É a topografia do sensível que coloca a matéria nos lugares imateriais. Um corpo, dois, os que forem. Escreve-se as cotas na pele, rasgam-se os marcos no geodésico dos seios, das coxas. Das mãos. Agora que me lembro, as mãos são o primeiro lugar verdadeiro que encontrei.

2 comentários:

blimunda disse...

este tenho mesmo que saquear,posso? é lindo, lindo de morrer...bj

Anónimo disse...

Quando se conhece alguém não lhe supomos uma realidade interior superior à de uma pessoa comum. No entanto, também pode acontecer pensarmos imediatamente que é superior, que é culto, que é inteligente.
O jpn está para além destas realidades. Parece realizar o impensável, captar a realidade inatingível, soletrar o mistério da palavra, palavra a palavra, alcançar o inaudível.
É tão belo, dolorosamente belo...
Parabéns.