quinta-feira, junho 30, 2005
A idade da razão
Do pensamento, disse que ele continua aqui a tentar aliviar-me do sofrimento da existência. Há muitos anos, a Filomena, estávamos sentados nas filas de secretárias da nossa sala de aula nos Viveiros, nos Olivais, fez-me um desenho inocente que ainda hoje guardo e onde me colocou com uma cabeça em forma de lâmpada e de ponto de interrogação. Com uma legenda: o Joaquim com micróbios filosóficos. Toda a minha vida foi esta sedução enorme pelo pensamento. Aos doze anos quando me perguntavam o que o meu pai era, respondia, filósofo. Se uns eram biólogos, ornitólogos, caçadores de marfim, o meu pai seria filósofo. Não o era mas nunca desmereceu o título. Ofereceu-me um Sartre, abriu-me a porta de um Camus, disse-me, pensa e serás salvo. Aliás, ele nunca me disse isso, afirmou, pensa e serás um homem. Nessa altura os pais concentravam-se obsessivamente em fazer dos filhos, homens. Uns levavam-nos às casas das costureiras, das serviçais, das floristas, das próprias mulheres de servir. O meu levou-me a uma biblioteca. Sentou-me a seu lado e tudo isto teria parecido ainda mais estranho se não estivéssemos no calor tórrido de 75. Diante do compêndio de filosofia de capa vermelha leu-me, ou teria recitado?, as provas da existência de Deus. Eram cerca de dez, segundo S. Tomás de Aquino, versão revista e aumentada. Lembro-me do da omnisciência, do da omnipresença, do da infinitude e aquele que eu mais gostava, o da contingência.
Descobri o meu corpo mais ao menos ao mesmo tempo em que descobri Alberto Caeiro. Nunca consegui desligar estes dois factos. Estava na Comuna, tinha feito um Curso de Teatro de um ano, ajudávamos ao funcionamento do café-teatro, serviamos às mesas, conheciamos gente admirável, que admiramos, lembro-me que o Zeca Afonso era passageiro frequente, o Alain Vachier da Era Nova fazia uns bolos deliciosos, tocávamo-nos com alguma perversão, a partir de certa altura da noite, hoje sei que tudo isso era simples como o barulho de uma cascata ou de uma crisálida a morrer antes da borboleta que aí vem, na altura era uma aventura, a aventura do corpo, eu estava impregnado do sensível, e depois, a meio da noite, João Mota lia o Guardador de Rebanhos, de Alberto Caeiro. É por isso que pensar hoje no que é em mim o acto de pensar me obriga a traçar um itinerário que vai até ao sítio onde descobri o anti-pensamento. E que foi o momento onde eu descobri que poderia, se trabalhasse arduamente para deixar de pensar, aspirar a momentos de pura felicidade. Caeiro, era, aí, o mestre.
Nunca consegui constituir a minha vida sem a pensar. Mudei algumas das permissas, dos lugares comuns com que afectamos o pensamento mas nunca consegui conceber uma vida livre sem pensamento. Uma delas é o de que é necessário parar para pensar. Hoje sei que tudo isso é falso. O movimento é um dos mais perfeitos pensamentos que um ser é capaz de produzir. Outra é a de que é necessário estar só para pensar. O pensamento é envolvência, é trazer o outro em mim.
Às vezes, muitas vezes, vezes demais, a minha cabeça pesa toneladas. Eu não quero, ou não queria assim, mas o peso impôe-se e constrange toda a minha vida. Há poucochinho uma flor sentou-se na minha mesa e nem me deu tempo para pensar. Pensar numa flor, e nem preciso de Caeiro para o perceber, é um dos gestos mais inúteis que conheço.
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