quarta-feira, junho 29, 2005
ÉS FORTE!
A criação, poeisis como diziam os Gregos, implica o aparecimento de algo de realmente novo, que não só se desvia como trai a tradição.
Camões propõe como princípio ético para todos os homens o reconhecimento do engenho - favor que não lhe dava a pátria - daqueles que se vão, pelas letras e as artes, da morte libertando.
Nietzsche acusa directamente Sócrates de ter sido um decadente, alguém que disse ao morrer: “viver significa estar longamente enfermo”.
Mas qual seria afinal o sintoma de Sócrates?
Em primeiro lugar, como é sabido, a palavra sintoma pertence à medicina. Sintoma é antes de mais o signo de um certo mal-estar corporal. J. A. Miller descreve o sintoma como "uma irrupção da verdade na vida do sujeito". O sintoma passa, portanto, a ter um valor de verdade.
No que diz respeito aos sintomas de Sócrates, Sócrates queixa-se antes de mais do seu destino: “dá ideia que uma má estrela me retém, de tal sorte que erro por aqui e por ali sem ter nunca caminho certo”. Sócrates estaria assim condenado a conviver com as suas incertezas, para além do seu mal-estar de alma.
Por isso, muitos comentadores falam desta atopia de Sócrates como uma tradução do conflito trágico entre a lei da cidade que acabou por o condenar à morte e o que a sua própria consciência lhe ditava.
Sócrates é, paradoxalmente, alguém cuja piedade o levou a ser acusado e condenado à morte por impiedade: “Não cedo ao que quer que seja, quando vai contra o que é justo, pois não temo a morte e prefiro morrer a ceder”. Porém, toda esta má sorte, a atopia e o menosprezo de Sócrates por si próprio não lhe trazia apenas dissabores, ele vivia disso, era com isso que construía a sua imagem, era porventura aí que se satisfazia, que gozava. Aqui não havia cedências. Era isso que o tornava, segundo ele próprio, aos olhos dos deuses, o mais sábio dos homens.
Por outro lado, o sintoma de Sócrates aparece ainda vinculado a uma demanda, a um pedido de ajuda: “não escuses a curar a minha alma: prestar-me-ás um favor incomparavelmente maior se a livrares da sua ignorância, do que se livrasses o corpo de uma doença”. Ele considerava que esta sua demanda interrogativa, constituía o único bem de que era possuidor: “sou persistente em questionar os homens sábios. Talvez seja mesmo este o único bem que possuo e o resto não valha um chavo”.
Em toda a sua vida, Sócrates preocupou-se com a sua alma, com o sentido da sua vida, por isso, apelava a todo o momento ao cuidar da alma, dado que, segundo ele, “uma vida sem reflexão não é digna de ser vivida pelo homem”.
A auto-análise é deste modo, segundo Sócrates, uma exigência do próprio sujeito humano. Para cumprir este desígnio, convida-nos a confiar exclusivamente na reflexão, no discurso: “Entrega-te corajosamente ao discurso”. Deste modo, a auto-análise de Sócrates acabou por encalhar no seu célebre “só sei que nada sei”, a certeza da incerteza.
O discurso de Sócrates é, por isso, um discurso sobre o finito, sobre a falta, sobre a morte, onde o sujeito se vê implicado.
Este lugar intermédio entre o saber e o ignorar é o desejar.
O seu discurso é o sintoma de um mal-estar radical: o sentido que orienta as nossas vidas escapa-nos, é insuficiente, ou seja, a suficiência do nosso saber seria pura ilusão.
Sócrates interpreta o ditame do oráculo afirmando que ele era pelo menos o único entre os homens que não julgava saber o que não sabia.
Contudo, como o próprio Alcibíades confessa, Sócrates recusava-se a amar, a colocar-se na posição de amante, não realizava a “metáfora do amor”, a “substituição do amado pelo amante”.
Sócrates só pode recusar isso, porque, para ele, nada há nele que seja amável. A sua essência é esse vazio, esse oco.
Sócrates, por seu lado, fazia gala em afirmar que era um especialista em amor, ainda que sobre tudo o resto confessasse nada saber: “eu faço profissão de nada mais saber a não ser de amor”. Sócrates reconhecia ainda ter bastante facilidade em captar a postura, a alma do amante e do amado.
Mas qual será o ponto cego de Sócrates sobre o amor, sobre o desejo, o que é que lhe escapa e faz aparecer o sintoma?
Sócrates queixava-se de uma voz que lhe causava mal-estar: “É uma coisa que me acontece desde a infância: uma voz que me surge e quando vem, sempre me impede de fazer alguma coisa, mas nunca me incita a fazê-la”.
Esta voz não é o sintoma do Respirar o Mesmo Ar, como um mal estar, é antes uma possibilidade de respirar poeticamente a nossa realidade. Que nos incita a fazer algo, a desfolhar post a post, numa busca de truques para que as horas dos dias nos criem a ilusão de cadência de um novo pêndulo.
Parabéns JPN, Celta, Textura e Intérprete!
Continuem a aliviar o meu sintoma.
Assim, sou, de facto, mais forte.
Lol V. Stein
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