quinta-feira, julho 07, 2005

Deolinda

É talvez a pessoa cuja imagem mais se modificou ao longo dos tempos. Decidida, prática, com alguma vocação para a autoridade, a minha Tia Deolinda começou por ser uma velhota muito baixa e redonda qua começava todas as frases autobiográficas por, uma vez na casa da minha senhora da Barão Sabrosa, ou, na patroa da Paiva Couceiro, estava eu na da Abade Faria... Esta imagem acompanhou-me durante toda a adolescência. A Tia Deolinda era uma mulher muito autónoma e independente e embora mantivesse aqueles traços rurais com que não se esquecia da sua terra, no lugar das Caldas, tinha também um ar despachado e moderno. Usava calças quando às senhoras isso não era costume, principlamente quando tão gordas e atarracadas. Via-a muito pouco. No aniversário do meu pai íamo-la buscar, quando a família começou a desagregar-se em vontades diferentes começaram a sobrar lugares no carro e ela ía com os meus pais para o norte, também, quando a minha mãe esteve hospitalizada ela veio tomar conta de nós, mas eram tudo fragmentos dispersos. Quando cresci comecei a reparar mais nela. Há um tempo para reparar nas pessoas e o meu só veio quando me emancipei no meu conhecer Lisboa. O meu primeiro trabalho foi como vendedor. Tinha dezanove anos. Vendia extintores, aparelhos de medir a tensão e detectores de fugas de gás e sitiavamo-nos ali, num cafézinho da Alameda, abrangendo a zona entre o Areeiro e Praça do Chile. Ou seja, os nomes das ruas que sempre tinha ouvido da boca da minha tia. Ela que vivia no Bairro dos Actores, numa pequena casa da Câmara. Também Deolinda só me achou interlocutor possível para a sua pequena caixa de segredos quando me viu maior, emancipado na minha dor. Aí foi ela que decidiu contar-me. Foi a primeira pessoa que me falou abertamente do facto do meu pai ter sido padre, que me contou porque tinha saído da terra onde nascera. Um amor que não podia ser. Um amor apertado no peito até mais não poder ser. O chão, a vizinhança, os amigos, a própria familia a faltarem-lhe debaixo dos pés. Veio para uma Lisboa de servir, uma cidade das patroas, das avenidas largas, das ruas com sol, das famílias grandes, sorridentes, com crianças a correr de um lado para o outro nos grandes corredores, com gestos de bondade entrelaçados em cada ordem. A sua verdadeira família. Já depois de se reformar insistiam em que passasse por lá. Sentava-se no lugar das visitas, na Abade Faria havia mesmo uma moça que era ela quando chegara à cidade e que lhe servia o chá, com bolinhos de manteiga, polvilhados com açúcar. Uns anos mais tarde trouxe-a para o meu universo, era a Esmeralda de FAROL. E não era ela, claro. Por vezes pensamos que roubamos as histórias das pessoas para as escrever. É uma parte da verdade. A parte mais desinteressante e banal da verdade. O que também se passa, é que aproveitamos a escrita das histórias para homenagear, para lembrar as pessoas da nossa vida.

1 comentário:

Anónimo disse...

www.myspace.com/deolindalisboa