segunda-feira, setembro 19, 2005

Dicionário do Silêncio: Suicídio

Suicidar-se. Do latim “sui caedere”. Esta pode ser uma forma de se começar a verbalizar o acontecimento. Ou a reflectir-se sobre o sucedido. No entanto, é provável que M. não tenha procedido desta forma. Será que reflectiu antes? Será que verbalizou antes? Terá sido um acto súbito, momentâneo, rápido? Terá sido instintivo, impensado? Queria atingir-se a si próprio ou a outro? Não sei dizer, mas foi o instrumento que M. encontrou para agir contra algo. Instintivamente, penso que a maior probabilidade se inclina para um estado interior intenso de desordem e tormento. De infortúnio. De intolerável. De insuperável. O fim de tarde estava a aproximar-se. Lia. Estava concentrada no ambiente da ficção. Num sexto andar também é habitual ouvirem-se barulhos, que são reconhecíveis, identificáveis. O barulho das obras de restauro no andar do lado provocava-me uma vaga irritação, um esforço, apesar do acordo tácito entre a minha racionalidade e a minha coerência. De repente, escutei outro ruído. De outra dimensão. Não caracterizável pela sua estranheza. Um barulho em simultâneo seco e difuso. Uma coisa era certa: não tinha saltado da ficção. Lembro-me de naquele preciso momento pensar que aquele era o dia dos ruídos, mas momentaneamente aquele sobressaltou-me, incomodou-me. Não sei porquê, não foi ruidoso, nem incomodativo, só estranho. Poucos minutos depois, voltei a concentrar-me no livro. Passadas duas horas, chegou a explicação, quase em surdina, tensa. M., o rapaz que conhecia desde menino, sempre só e sempre acompanhado do pai (estranho, não é?), bom aluno, particularmente inteligente, um pouco reservado, sem mãe visível. M., que vivia só com o pai. O pai, um poeta reconhecido. M., que tinha apenas 17 anos. M. abriu a janela, e saltou para o vácuo sem retorno. Deve ter sido tamanha a sua impetuosidade, a sua decisão de tal grandeza, que caiu nos braços de uma árvore, afastada a muitos metros da sua janela. “Caedere” também significa “cortar as árvores”. Passados dois meses, ainda penso na estranheza daquele salto. Por isso não duvido que algo tentou salvá-lo, o vento, talvez, alguma força da física que desconheço. Mas essa árvore, que continua lá em baixo forte e estável, numa verticalidade rumo à luz, em posição contrária à queda de M., em direcção às trevas. A árvore que é metáfora de vida, foi essa mesma árvore que permitiu que M. verbalizasse as suas últimas palavras ao porteiro do prédio que correu para junto dele: “Eu quero muito morrer”. O pai não abriu a porta a ninguém; não correu escadas abaixo para o seu filho. Ficou preso a ele próprio e, provavelmente, ao poema mais longo de toda a sua vida. Num lugar onde habitam as almas dos mortos. Fonte e Texto: Lol V. Stein

2 comentários:

Anónimo disse...

Não queria ler mas não resisti. Vivi há alguns anos esta terrível tragédia. Era alguém que eu amava. Muito. Suicídio foi silêncio para mim, durante muito tempo. Um silêncio bruto, opaco e destruidor. Ainda cá está, todos os dias.
Chorei quando li. Convulsivamente. Esta narração, sem culpado, sem explicações, sem porquês,comoveu-me. Li aqui um conto sobre os ramos das árvores que acolheram um pequeno-grande menino.
Passou uma ideia por mim, será que conseguiria escrever sobre a (in)compreensão de um suicído?

Anónimo disse...

Também acho que é uma palavra que nos deixa silenciosos, sem saber o que dizer.
Por outro lado, de tanto ouvirmos falar de homens-bomba esquece-se o significado da própria palavra.