Antes, nas manhãs, deixavas-te estar na mesa posta do pequeno-almoço, toalha de plástico aos quadrados, não te levantavas logo. A telefonia transpirava subidas de gasolina, escândalos políticos e o sol enchia toda a cozinha e a gaiola do periquito através da marquise. Levavas a faca de cabo de madeira, com restos de marmelada, à toalha, e eu, todos os dias, esboçava um susto suspirado como se não soubesse e preparava a boca num ralho. Perfilavas com atenção alegre e distraída as migalhas em carreiros direitinhos e eu praguejava que tinha que me queixar à padeira, que não podia ser, um pão fizesse tanto migalheiro. Era, no entanto, um ralho de mulher, um ralho vazio.
Hoje, a faca pousada e inerte como se sempre lá tivesse estado, intacta, de cabo de madeira assente na toalha quadrado sim, quadrado não, branca, quadrado não, quadrado sim, azul.
A faca solene perante o silêncio. Ou impondo o silêncio. Contas os quadrados do plástico, sem os nomeares ou eu saber em quantos vais, dizias ao João António o mesmo quando ias com ele à injecção da alergia, Olha ali filho, conta os azulejos da parede que não te lembras da dor!.
É para não te lembrares da dor de não te lembrares que contas as migalhas?
São àsperas e colam-se à polpa dos dedos como as pestanas quando é para pedir desejos.
Peço que vás sendo criança, quando sorris, mas sei que vês a toalha azul e branca imensa como um oceano antigo e há adamastores quando a mesa acaba, os teus olhos muros altos, a contar quadrados cheios de migalhas e a evitar os monstros para além da mesa
estás esquecido da nossa vida as horas do médico a contabilidadedos comprimidos
só contas os quadrados da mesa, sabendo que se perderes a conta deixas de saber contar para sempre
Perguntas-me Que horas são?, e nunca olhei tantas vezes seguidas para o pêndulo pontiagudo do cimeiro relógio de parede ou para a correia gasta do relógio de pulso, não que queira saber do tempo, quero apenas dar-te uma hora, quando me perguntas no comboio e me envergonhas em frente de mulheres mais anafadas e infelizes que eu Quem és tu? ou Desculpe incomodá-la, podia dizer-me se este comboio passa pelo Pinhal Novo?.
Com jeitinho, eu ao teu ouvido
à laia dos cheiro de usado dos estofos encardidos em que me revejo, digo
João António
os estranhos pensam que é o teu nome, sorriem de lado, nunca de frente, pois receiam um fim assim
e eu sorrio de volta
sei tão bem que é possível e que o comboio pára no Pinhal Novo, numa estação com vista para marquises solarengas, com mesas de cozinha de mogno, com toalhas plastificadas como a da nossa cozinha.
Puxo-te pela manga do sobretudo até às escadinhas da carruagem que desembocam na plataforma e vens sem dificuldade, como se contasses migalhas ou quadrados.
O nosso filho João António espera-nos com uma cara cansada de meia-idade.
1 comentário:
Excelente!
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