sábado, abril 08, 2006
A insurreição dos vivos
Deveríamos fazer uma convenção contra a morte. À séria. Com abaixo assinado formalizado e endereço no espaço sideral como aqueles que surgem um pouco por todo o lado. E para mostrarmos que não estamos imbuídos de nenhuma espécie de egocentrismo prescindiriamos de vituperar a morte própria. Ou a daqueles que nos são próximos. Ou a dos nossos familiares. Vizinhos. Conterrâneos.
Iríamos mais longe até. Só ergueríamos as vozes vocifrantes quando na posse do ácido desoxirribonucleico de uma determinada morte comprovássemos, à luz de uma ciência isenta de dor própria, que tudo naquela morte nos era estranho. Clarifiquemos: a morte motivo da nossa insurreição seria toda ela imbuída da maior estranheza. Continuaríamos por isso a chorar os nossos mortos. A velar-lhes o corpo, as cinzas, a memória que deles tinhamos e que o corpo, na sua exiguidade de natureza morta, não resgatou para si mesmo.
A nossa revolta era política. Ontologicamente política. Recusávamos por isso morrer com dignidade. Nós saberíamos que há nenhuma dignidade que sobreviva à convenção com que empanturrámos as mãos de trampa mole. Somos dignos na morte para a nossa família, para os nossos amigos, para os nossos vizinhos, para os nossos concidadãos. Mas não é diante deles que morremos. Aliás, enquanto eles durarem, e seja lá o que fizémos para merecer a nossa improvável imortalidade, nunca morreremos. O segredo da imortalidade é a longevidade do nosso círculo de familiares, de amigos, de conhecidos, de contemporâneos. Nada nos assegura que os vindouros, aqueles que persistirão ao imenso fogaréu vaidoso com que gastámos uma oportunidade de nos sentarmos à direita do pai, saibam ler os nossos signos, desvendar as nossas apoteoses.
A nossa insubordinação seria contra o intransitivo que há no morrer. Vista deste lado a vida é um pesadelo. Os vivos que somos nós já morreram. A nossa morte matou-os. O pior de tudo isto não é a morte em si. A morte em si ainda nos seria suficientemente próxima. A pior morte é este véu que acaba por entristecer todo o modo como vivemos. Há no espirito de todos os revoltosos a ideia muito clara de que insurgir-nos contra a morte é a única esperança de uma vida outra. Porque a terrível morte a que sujeitamos todos aqueles que não nos são próximos só pode ser entendida à luz desta nossa incomprensão pela morrença a que estamos sujeitos. Liberte-se um canalha, um torturador, um ávido, da incompreensão perante a sua morte. Ver-se-á, sem alguma margem para dúvidas, que aquilo que fizémos foi expurgá-lo da sua canalhice, da sua maldade, da sua ganância.
A história da humanidade é abundante nos testemunhos de que um homem renasce quando tem a ventura de olhar a sua morte nos olhos.
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3 comentários:
Há morte a mais neste post. Gosto mais quando falas da vida, como nos dois posts anteriores.
Um abraço e obrigada pela visita a lusarte.
Renasce e depois volta ao que sempre foi, se consegue escapar à visão.
Esse é que é o grande testemunho da história da humanidade.
O homem não conseguir desembaraçar-se dos seus fantasmas e demónios.
Só os beatos e os loucos...
mas porque é que a morte há-de ser sempre coisa ruím? porque não morrer depois de viver? é a minha obsessão pela obsessão dos outros pela morte. deixem em morte viver em paz, ora bolas.
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