quarta-feira, maio 24, 2006

Levantar os olhos

Abrir o dia como se fosse um livro. Um livro que se desfolha com vagar. Como se se lançasse um lastro pelo tempo manso. No ar há vozes. Refrões. Marisa Monte. Abrir o dia como se fosse uma canção. Uma melodia. Há dentro de mim, de ti, de todos nós, um som único. Ainda me lembro do primeiro contacto que tomei com o meu filho. Uma ecografia ligada a um monitor que transmitia um pequeno ponto trémulo. E no ar um som. O batimento cardíaco dele. Já contei a história creio. Passei logo ali a pensar que iria ser pai de um homem bom. O bater do seu coração dizia-me isso. Era intuitivo, eu sei. Mas nesse dia, e tudo era ainda precoce neste projectar-me pai, senti-me verdadeiramente ligado àquele que iria nascer. Abrir o dia como se fosse um livro. Um livro que se escreve rápido, sofregamente. Tudo é ontem no que vivo, no que vivemos. Ainda ontem estava à beira do Rio Cego, entre Mafra e a Paz, a jogar aos turras com o Caetano, o Ferradoza e o Manecas. Ou a gamar notas de alface na carteira pródiga da minha mãe, para o vício, o cigarrinho. Ainda ontem estava na Universidade, naquela antiga cavalariça, a recordar o meu primeiro dia de aulas. Como é que arrumo os ontens já vividos? E a minha pergunta, e é com uma pergunta que sustenho um pouco este movimento acelerado que é o dia, eu terei vivido tudo o que vivi? Vivi realmente tudo o que vivi? O bom senso diz-me que não. As minhas dores serão essas mesmas. O que deixei de viver daquilo que tive para viver. Às vezes espanto-me com a minha tão pouca ambição. Eu não queria viver outra vida. Por exemplo, se quis em miúdo ser super-homem para cuidar de um mundo às desavenças (sou filho da guerra fria) nunca quis ser deus para sarar a dor-de-não-ser-eterno. Contento-me em ser eterno na ternura com que me lêem, na duração desse momento de conivência e cumplicidade de ti para mim. Agora, se num repente de sinceridade me perguntar o que daquilo que não posso queria ter, direi, a possibilidade de voltar atrás para viver o que não soube viver. Há uma ética do mundo, acredito nisso. Na imensa variedade, na muliblilionésima diversidade da fauna humana há um princípio ético que ainda assim - seja, à custa de muita ingenuidade - consigo descortinar: a relação de cada um com o tempo que lhe é dado viver. Tudo o resto talvez entre pelo campo das moralidades. Apenas esse instante em que cada um, diante de si mesmo, se tenta adivinhar no que lhe foi dado viver, e, como num imenso jogo de cabra-cega, intuir sentidos, apenas esse instante tem o dinamismo ético suficiente para contribuir para uma ideia de comunidade (que nasce connosco desde a história do nosso primeiro sopro). Levantar os olhos para o céu, para o mundo. Saudar no espelho este pedaço de matéria animada que nos permite continuar no número dos vivos.

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