sábado, junho 24, 2006

Gente encaixotada (1)

"(silêncio)

Duas

Ainda me lembro daquele dia em que me tiraste daquele quarto fechado. Era inverno. Às seis da tarde fecharam-me no quarto com a Lurdes. Às seis e meia tentei falar com a Lurdes, interrompia-a...Interrompia-a...há meia hora que ela falava com as suas pedras. Nesse dia não achei estranho, não pensei, o mundo, o mundo, esse berlinde tão pequenino e tão distante...

Jorge

Foste apanhada por eles, Duas.Estás aqui mas nunca te libertarás...

Duas

Não, não, não...não quero voltar...

Jorge

Tens pouco a dizer sobre isso...

Duas

Estás cansado, Jorge.

Jorge

Não. Também me lembro das pressões que tive de enfrentar para justificar a tua saída daquele quarto horrível...

Duas

A Lurdes olhou-me...

Jorge

A Lurdes também não regressará a casa. Ninguém sai vivo dali...Ninguém...

Duas

A Lurdes olhou-me, disse-lhe adeus, despedi-me das pedras...

Jorge

Das pedras, Duas?

Duas

A Lurdes dava-lhes nomes, deitava-as em caixas de fósforos, pensava serem meninos orfãos como ela. Ficou feliz quando eu me despedi delas. Dei-lhes um beijo.

Jorge

As pedras...

Duas

Para a Lurdes eram humanas...talvez das poucas coisas humanas daquela casa...tudo o que nós imaginamos é tão verdade como o resto. ..(rindo-se) Até porque o resto não é outra coisa senão aquilo que os outros imaginam...

Jorge

Ando há dois anos a dizer-te isso. Nada mais.

Duas

Desculpa se me acho um pouco mais complicada do que as pedras da Lurdes, Desculpa-me...

Jorge

Outra vez não! Anda, vamos para casa!

Duas

Ainda preciso de falar...

Jorge

Treina com as pedras...(rindo) ...Logo mais estarás como a Lurdes...

Duas

O que eu sou nas tuas mãos, Jorge!

Jorge

Boa altura para começares a ser nas tuas próprias mãos...

(afasta-se)

Duas

Se vais embora mato-me...arruino a tua carreira...

Jorge

É possível, é possível...

(afastam-se)"

------------------------- (1) Do texto "Seis", de 1988.

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