"(silêncio)
Duas
Ainda me lembro daquele dia em que me tiraste daquele quarto fechado. Era inverno. Às seis da tarde fecharam-me no quarto com a Lurdes. Às seis e meia tentei falar com a Lurdes, interrompia-a...Interrompia-a...há meia hora que ela falava com as suas pedras. Nesse dia não achei estranho, não pensei, o mundo, o mundo, esse berlinde tão pequenino e tão distante...
Jorge
Foste apanhada por eles, Duas.Estás aqui mas nunca te libertarás...
Duas
Não, não, não...não quero voltar...
Jorge
Tens pouco a dizer sobre isso...
Duas
Estás cansado, Jorge.
Jorge
Não. Também me lembro das pressões que tive de enfrentar para justificar a tua saída daquele quarto horrível...
Duas
A Lurdes olhou-me...
Jorge
A Lurdes também não regressará a casa. Ninguém sai vivo dali...Ninguém...
Duas
A Lurdes olhou-me, disse-lhe adeus, despedi-me das pedras...
Jorge
Das pedras, Duas?
Duas
A Lurdes dava-lhes nomes, deitava-as em caixas de fósforos, pensava serem meninos orfãos como ela. Ficou feliz quando eu me despedi delas. Dei-lhes um beijo.
Jorge
As pedras...
Duas
Para a Lurdes eram humanas...talvez das poucas coisas humanas daquela casa...tudo o que nós imaginamos é tão verdade como o resto. ..(rindo-se) Até porque o resto não é outra coisa senão aquilo que os outros imaginam...
Jorge
Ando há dois anos a dizer-te isso. Nada mais.
Duas
Desculpa se me acho um pouco mais complicada do que as pedras da Lurdes, Desculpa-me...
Jorge
Outra vez não! Anda, vamos para casa!
Duas
Ainda preciso de falar...
Jorge
Treina com as pedras...(rindo) ...Logo mais estarás como a Lurdes...
Duas
O que eu sou nas tuas mãos, Jorge!
Jorge
Boa altura para começares a ser nas tuas próprias mãos...
(afasta-se)
Duas
Se vais embora mato-me...arruino a tua carreira...
Jorge
É possível, é possível...
(afastam-se)"
------------------------- (1) Do texto "Seis", de 1988.
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