sábado, junho 24, 2006

Gente encaixotada I (1)

(Jorge e Duas estão na esplanada da praia)

"Duas

Não sei...Não sei...

Jorge

Sabes melhor do que ninguém, Duas...

Duas

Enganas-te...

Jorge

Tu é que nos enganas...

Duas

O que queres dizer com isso?

Jorge

A tua inocência seria um alibi perfeito se tu realmente não soubesses...

Duas

Não sei, Jorge, não sei...há um ano que ando por aí ao sabor da corrente. Não entro nos supermercados, afasto-me dos ajuntamentos, evito as ruas interiores...

Jorge

Foi mais dificil saires daquele hospital...

Duas

Ainda sinto aquela sensação de buraco vazio...de claus-tro-fobia...

Jorge

A impaciência não te ajuda em nada...

Duas

No hospital havia uma certa amizade.

(Jorge sorri largo)

Duas

Ainda hoje quando lá vou à consulta sinto esse calor...

Jorge

Calor, Duas...

Duas

As enfermeiras chamam-me pelo nome próprio...sorriem...sorriem para as paredes brancas e depois olham-nos cuidadosamente. Chego a pensar na brancura das paredes como um enorme sorriso humano... (pausa) Os outros invejam-me quando saio de lá...coitados não sabem...

Jorge

Sabem, claro que sabem. O teu caso sempre foi diferente...

Duas

Sou uma tolinha...os tolos não têm patentes...

Jorge

Há diferenças. É a partir delas que pudemos fazer algo.

Duas

O tempo é uma diferença. Lá em casa sempre fui a doidinha. Ao principio era um carinho, com o passar do tempo resta o diminuitivo( Pausa) Estou a ser pessimista, Jorge?

Jorge

Tens razões para o seres.

Duas

Como meu médico não devias aceitar as minhas razões...

Jorge

Não as aceito. Ouço-as.

Duas

Mas aceita-las.

Jorge

Essas razões não te pertencem. Enganas-te quando pensas que as paredes daquele hospital são um longo sorriso humano. São uma voz. Uma voz que não te larga como se te tivesse transformado no seu eco.

(silêncio)

Duas

O tempo do mundo já cá não estava quando vim. Cheguei atrasada..

(Jorge ri)

Duas

Ris?

Jorge

Sabes bem que não. Ouço-te...

Duas

Às vezes penso que o louco és tu...( Jorge dá uma sonora gargalhada) Podias-me levar a sério.

Jorge

Se isso adiantasse alguma coisa fazia-o.

Duas

Sou então um caso perdido.

Jorge

Claro. Mas a última palavra é tua, não do teu médico. Ele só passa a certidão.

Duas

És doido...

Jorge

Não, aqui não existem doidos.

Duas

Estou farta !

Jorge

Estás entre a loucura e a lucidez. Falta-te dizer vou embora. " Estou farta e vou embora"

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(1) Do texto "Seis", de 1988.

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