quarta-feira, junho 14, 2006

Photos não reclamadas (I): Conto de Verão

Naquela cozinha tinha elaborado mil pratos para o seu amor. Nasciam como cogumelos (salteados, de preferência) de um coração exaltado a pedir meças com o palato. As iguarias mais exóticas, das quatro partidas do mundo, encontraram-se naquele espaço exíguo de azulejos branco-gorduroso devido a uma paixão feliz. É certo que o fogão do T0 alugado à velha de cabelo roxo (quem é que convence as velhas de que o roxo é cor natural, a que melhor lhes assenta a partir dos 70 anos? Deve haver um complot à escala do País para dar saída aos infindáveis stocks de roxo escondidos em armazéns clandestinos, debaixo das nossas casas, das ruas, subterrâneos cheios de prateleiras de onde de vez em quando uma raíz mais afoita faz rebentar um jacarandá à superfície), é certo que o fogão acanhado e coberto de placas de gordura a fazer de inox, diziamos, não emprestava muita nobreza à confecção culinária. Mas alguma vez o seu amor se queixou? Fitava-o embevecido sempre que cozinhava, com aquele ar sério que os amantes emprestam às tarefas mais comezinhas (uma boa palavra a aplicar neste contexto). Tentou strogonoffes, souffles elaborados e fofos, tantos morangos desperdiçados à procura da consistência certa de uma bavaroise inovadora. Gostava de pratos com nomes franceses, a meca de todos os cozinheiros, o seu amor era francês. Conheceu-a na praia da Costa, numa dessas raras incursões ao exterior do seu T0. A partir do momento em que a levou para casa, sentada ao seu lado no carro (um carocha da mesma idade, 30 anos), percebeu que a sua história seria feita de silêncios e de sentidos. O mais nobre, o sabor, tinha de ser preservado. No fundo, planeava conseguir o acompanhamento perfeito para aquela companhia perfeita. Nesta tarefa gastou 30 dias. Ao 29.º, tirou uma fotografia em frente ao fogão acanhado e coberto de placas de gordura, os despojos da paixão, e levou o rolo de uma só photo à loja do Pingo Doce da Graça, mesmo ao lado do T0 acanhado da velhota de cabelo roxo. No dia seguinte (os mesmos dias que a sua idade e a do carocha) percebeu que o seu amor tinha passado do prazo quando a polícia bateu à porta, atraída pelo cheiro do cadáver francês rodeado de mil iguarias. A justiça perdeu-se em teorias - canibal? Louco varrido, não sabia que os corpos apodrecem? Será que ia realmente comê-la? -, ele perdeu-se entre dez gramas de noz moscada e um rim salteado. Que não era o dela. O rolo nunca foi levantado.

1 comentário:

8 e coisa 9 e tal disse...

chiça penico..

Será que ele acreditava que se a comesse ficaria para sempre com o olhar embevecido e amoroso com que ela o olhava?