terça-feira, julho 25, 2006

Militarização da vida quotidiana

Imagem do Oito e Coisa Nove e tal
1. TBR chama a atenção para um aspecto que, quanto a mim, deveríamos discutir melhor e mais vezes: a forma como o terrorismo militariza a chamada vida civil. Já ontem um amigo, indirectamente me chamava a atenção para isso, quando dizia que o grande problema parece ser a nossa incapacidade de nos relacionarmos com o fundamentalismo islâmico. Deveremos para isso espalhar alguns conceitos em cima da mesa como: guerra; civis; armamento; conflito; violência; não violência. E tentar perceber se a forma como nós o entendemos é a mesma como a entendem associações e grupos de acção armada. Quando chamamos guerra convencional, esquecemo-nos muitas vezes de que estamos a falar de uma convenção que visa preservar o mundo da generalização do horror e da banalização da morte. A guerra convencional suporta-se um pouco naquelas regras dos jogos de crianças em que há o coito, que é um lugar onde estamos a salvo das investidas dos outros jogadores. O coito na guerra convencional é o estado civil, é a natureza civil. A guerra convencional foi inventada para que pudéssemos sobreviver à nossa violência, à nossa necessidade de conflito. É por isso que a guerra convencional tende a ser um dispositivo próprio de sociedades assentes no mecanismo da representação. Aliás, a forma como ela se organiza só é possível em Estados onde a ideia de representação atingiu um elevado grau de sofisticação. Quem já foi alguma vez a uma caserna já se apercebeu de como ela é um lugar de excepção da experiência humana. A encenação da violência de que ela necessita não só para cumprir os seus rituais mas essencialmente para projectar com alguma eficácia a preparação dos mancebos, é fortíssima. Tudo tem a ver simultaneamente com o exercício da actividade guerreira e com o domínio da representação. As armas, os fatos, os códigos, a linguagem, os toques, as paradas, os gestos. As sociedades aptas e dextras para entrarem na guerra convencional estruturam-se através de ilhas que obedecem todas elas àquilo que se convencionou chamar dispositivo da visibilidade total: a ilha da expiação, remissão e reintegração social(através das cadeias), a ilha do tratamento e da cura da doença (através dos hospitais) e a ilha da preparação e execução da guerra ( através dos quartéis e instalações militares). Se Portugal entrar em guerra com a Espanha, a maior parte de nós pode esperar poder continuar a exercer a sua vida normal. Alguns de nós, vestidos a rigor, armados a preceito, vão morrer por nós.
2. Há aqui algumas derivações que é importante fazer na análise.
A primeira é a de que essa concentração da violência no dispositivo militar como aquele que naturalmente é vocacionado para agir e reagir sobre a violência que é exercida sobre uma determinada comunidade tende a desresponsabilizar as comunidades pelo exercício da violência e nessa medida, como tudo o que é próprio das sociedades onde a representação atinge um elevado patamar de sofisticação, pode facilitar a hipocrisia social. As democracias mais evoluídas construiram alguns dispositivos de prevenção deste fenómeno, através de uma constante aproximação do representante à esfera do representado mas a maioria das nossas democracias são muito pouco convincentes nesse domínio. A acção da guerra, que é uma actividade onde, na grande parte dos casos, se decidem aspectos essenciais como a morte de seres humanos em troca da segurança de outros, é cada vez mais remetida para o seu aspecto simbólico. Teatro de guerra, cenário de guerra, actores da guerra, por exemplo, são trocas linguísticas com o mundo teatral que nos dão conta dessa transferência semiótica. Esse é portanto um aspecto que deveremos (lá estou eu a pensar que estou acompanhado nesta reflexão) seguir com mais atenção.
A segunda é a de que a guerra convencional é um conceito que implica um conjunto de convenções que têm de ser comummente aceites. A lógica da guerra convencional levou ao armamento global do planeta, como é natural. Esse armamento sofreu uma escalada global durante a guerra fria, concentrando-se em dois blocos que detinham uma capacidade de aniquilação do outro exponencialmente superior ao que havia para destruir. Era a lógica da corrida aos armamentos como estratégia de dissuassão. Este jogo da guerra convencional implica necessariamente uma articulação com os mecanismos de poder tradicionais, nomeadamente o económico. Um dos grandes dramas da desarticulação do império soviético foi a entrada no mercado negro do seu potencial tecnológico e científico relacionado com o nuclear. Há no entanto algo que é anterior a todas estas convenções, que é a da base da actividade guerreira: a existência de um inimigo e a assumpção da necessidade de o aniquilar. É uma perspectiva redutora da existência humana, todos o sabemos. Mas existe e naturalmente sobrepôe-se a todas as convenções de guerra. Ou seja, não deveremos estranhar que haja forças que não aceitem uma determinada convenção e que se situem num paradigma comunicacional onde a valoração que nós damos às coisas não tem valor nenhum. Poderemos condená-los, expurgá-los do nosso conceito civilizacional, apelidá-los de bárbaros. A linguagem que criámos para nos defender da nossa própria violência e barbárie, autoriza-nos a fazê-lo. Mas os vindouros para nos compreenderem terão de se munir da mesma benevolência com que nos analisamos o pragmatismo dos conceitos de civilização e barbárie na antiga Grécia e Roma. Ou seja, não deveremos impressionarmo-nos - a exacerbação da violência da propaganda já o tinha denunciado - por uma das frentes da guerra do terrorismo ser uma guerra comunicacional.
3. Parece que estou a criar um texto de evidências. Mas não estou. Por muito dura que seja a realidade não há nenhum motivo para que um militante do Hezbollah se inscreva numa racionalidade própria da guerra convencional. Ele nesse campo nunca poderá não digo ganhar, aspirar a ganhar. Ou melhor, não poderá ser reconhecido como um potencial ganhador. Ninguém o leva a sério. Ele só pode ganhar se inventar outras regras. E essa regra, é a da militarização de toda a vida das sociedades que adoptaram a guerra convencional. É a única forma de instalarem o medo nas nossas casas. O Hezbollah - e não olhem para mim como se eu soubesse o que digo, apenas repito, como um papagaio, o que leio - tem uma força política minoritária mas neste momento tem o país político refém da sua acção militar de lançamento esporádico de rockets que têm um valor simbólico muito forte. Elas significam que a insegurança latente com que os israelitas sempre viveram habituando-se a ela, se transformou num facto real. Basta ver a cara de horror de um israelita para perceber que eles não estão preparados para tudo como certa inteligência politica gosta de sublinhar. Eles estão preparados para se sentirem virtualmente atacados e para ouvirem o seu exército ripostar sem piedade. Foi assim com os Scuds, foi assim com os rockets. Poder-se-à dizer que a inteligência política do Hezbollah resulta mais da estupidez do adversário, neste caso o exército israelita, mas não é verdade. O Exército israelita deve ser um dos exércitos do mundo mais treinados para a resignação. Não foi estupidez, foi desespero, loucura e só depois estupidez. Não parece também ser muito inteligente a forma como alguns dirigentes ocidentais se aprestam a dizer que reconhecerão politicamente o Hezbollah se este abandonar a luta armada. Dizer isto é o maior reconhecimento político que um movimento com tão pouca expressão popular pode aspirar. Parece a fábula da raposa e da cegonha. E perfeitamente inútil. É claro que se este movimento deixar a luta armada e mantiver apenas a sua reduzida expressão política terá de ser reconhecido. O Hezbollah não precisa de ter conhecido La Fontaine, basta-lhe ter aprendido com a Al Quaeda e com o estertor da OLP e da Fatah. O Hezbollah parece ter somado uma importante vitória: leva-nos a todos ao desespero, à loucura e à estupidez.

No entanto a nossa desorientação é total. Se por um lado não podemos reconhecer a lógica da militarização do quotidiano que dá um terrível ascendente político a um movimento de acção armada e de acção terrorista, por outro lado não poderemos sequer conceber que um país como o Irão, transformado numa potência pelo declínio do Iraque, possa ter um desenvolvimento de um programa de energia nuclear. E não interessa se a pretende para fins pacíficos ou para fins bélicos. Isso é mera retórica. O Irão irá sempre dizer que a pretende para desenvolver a energia nuclear e quando estiver capaz de fabricar a bomba, fará a bomba e um belo dia deixará escapar a informação que a tem. E depois passa a valer um pouco mais no mercado internacional do teatro de guerra convencional. Não sei o que é que o presidente do Irão escreveu na carta que enviou a George Bush mas creio que não será nenhum novo segredo de Meca. O que ele quiz dizer é que entende estas coisas num plano de igualdade. Os presidentes escrevem aos presidentes, independentemente de um ser o presidente de uma superpotência e o outro de um país do Médio Oriente.

Se não compreendermos que para os grupos e movimentos que adoptaram a acção armada e a realização de actos terroristas a racionalidade da guerra convencional os encontra sempre no lado dos derrotados, dos submissos, não compreenderemos algo essencial que mudou desde o 11 de Setembro. Até ao 11 de Setembro ainda havia, em alguns contextos, a possibilidade da legitimação da existência dos movimentos de libertação, da luta armada no contexto da resistência politica e militar. Estados como a Libia, Siria, Irão, Paquistão, nas sequelas do movimento dos países não alinhados, íam pagando as despesas de um movimento que internacionalizava a luta armada em diferentes contextos. Eram grupúsculos que davam muito trabalho à Cia mas o mundo não os levava muito a sério. No 11 de setembro um multi-milionário árabe, modifica tudo isso. A partir daí desaparecem os conceitos de movimentos de libertação, de resistência, de luta contra a ocupação já que este tipo de prática é englobada naquilo que se chama o terrorismo e que começa a ter uma evidência comum para grande parte da humanidade: duas torres a cair e a engolirem milhares de pessoas nos seus escombros. Esse extremar dos campos na retórica do Ocidente tem resultado muito fortes no mundo islâmico, principalmente depois da guerra do Afeganistão e do Iraque. A lógica do submisso, do derrotado e do congratulado por movimentos de opinião afectos à esquerda deixa de fazer sentido para os praticantes da luta armada. A Líbia desistiu deste mundo, pagou as indemnizações que tinha de pagar e enfiou-se no seu deserto. A própria esquerda parece desnorteada diante do poder metafórico da guerra do terrorismo e o tradicional apoio que tinha nos media para este tipo de causas migrou-se para os valores neoconservadores e do neoliberalismo. Deixou de ser simpático defender o Outro, principalmente quando ele ameaça os nossos interesses vitais. A esquerda possível emigrou para a condenação do terrorismo, a impossível continua a chafurdar na causa das coisas e a outra, a pragmática, a que devia ser ouvida, porque filiada em valores que sobrevivem à histeria dos novos coléricos, essa não é ouvida. É dramático dizê-lo mas desde o 11 de Setembro a prática com mais visibilidade e eficácia política é a acção terrorista contra a vida quotidiana. Os maiores ataques realizados foram perpetrados utilizando meios de circulação (aviões, comboio e metro) o que tem um valor simbólico terrivel. A partir de 11 de Setembro muita gente evita andar de avião. Depois de 11 de Março o comboio deixou de ser um meio de transporte seguro perto das grandes cidades. E que dizer do Metro, onde nos sentimos autênticas cobaias? A simbologia dos ataques terroristas é terrível. Querem-nos inertes, imóveis, transidos de medo e pânico. E não atacam apenas as nossas cidades, os nossos lugares de trabalho. Vão também aos sitios de lazer, onde nos evadimos um pouco deste stress de uma guerra não anunciada.

São terríveis. Podemos até, para nosso conforto julgá-los bárbaros. E serão, no nosso conceito de barbárie. Só que o nosso conceito de bárbarie diz-lhes tantos a eles como a nós nos diz o deles de civilização baseada num fundamentalismo islâmico em que todos os aspectos da vida, político, social, cultural, económico se subordinam ao religioso. A luta travada entre o fundamentalismo islâmico e as nossas sociedades assemelha-se a um duelo em que cada um escolhe as armas que mais lhe convêem. O problema é que enquanto não soubermos como dialogar com os fundamentalistas islâmicos, e é verdadeiramente desesperante pensar em como o fazer, iremos fechar cada vez mais a porta ao islamismo moderado, capaz de se seduzir pela implantação de regimes assentes na democracia política.

4. Outra derivação importante: haverá alguma relação entre este sobrepôr de deus em todas as coisas e o sentimento de impotência e de exploração a que o povo árabe é sujeito quer pelos nossos interesses estratégicos ( como esta palavra é cínica e unilateral), quer pelos ditadores e monarcas que inventámos para perpetuarem o nosso status quo naquela zona do Oriente? Vejamos os nossos fundamentalistas, que também os temos: de que se alimentam eles, o que os vivifica?

Deus, história e guerra. A santíssima trindade do Médio Oriente.

[Este é o post 2421 e é diferente de quase todos os posts. É extenso, continua em aberto, aparentemente irresolúvel. Não vou passar a escrever assim (excepto no Reservado Direito de Admissão) sempre. Para todos os efeitos este é o post dois mil quatrocentos e vinte e um e é único.]

5. Aproximemo-nos do fim: se o conceito de guerra convencional é um conceito que está muito ligado à nossa civilização, que se especializou na representação, ou seja, a re -apresentar as coisas segundo códigos e convenções que tendem e criar uma relação simbólica que suporta o processo de representação, se os grupos radicais islâmicos não querem compreender-nos porque já não acreditam em nós, ou porque a aceitação da compreensão parece ser nos seus casos, a aceitação da submissão - então é preciso percebermos que quando eles atacam civis, estão a atacar pessoas e simultaneamente o conceito de civil. Ou seja, por mais que nós não o queiramos entender, o Hezbollah, assim como os diferentes grupos de acção armada, não atacam civis, porque este conceito não existe para o Hezbollah. o hezbollah não pode ter um exército porque os exércitos são vulneráveis. Eles atacam pessoas que significam o enfraquecimento da nossa ideia de sociedade civil. Para nós são civis. É assim que deslindamos o que eles nos fazem. Só que para eles, são alvos porque a sua guerra, não é uma guerra convencional. Os seus soldados também são civis. Não creio que os milhares de iranianos que se aproximam do Líbano para combaterem Israel sejam soldados. São combatentes. Pessoas que deixam as suas casas, os seus empregos, as suas universidades, para combater Israel. Não os soldados de Israel.

Custa muito dizê-lo mas eles tem algumas razões para isso e pior, a razão que têm fomos nós que a atribuímos. A ideia de representação da violência é uma ideia que nos serve para vivermos melhor, com menos violência. Nas ilhas deste arquipélago social onde nos encontramos existe violenta maneira de existir. Mas o facto dos nossos exércitos combaterem a milhares e milhares de quilómetros das nossas casas também faz com que nós levemos a violência para longe, milhares e milhares de quilómetros, das nossas casas. Como aquelas pessoas que vão vazar sacos de entulho a céu aberto longe de casa, em sítios belíssimos, nós também o fizémos.

------------------------------------------------ (Este post esteve incompleto, mas já está completo. Resolvi escrevê-lo à vista de todos. Para ajudar à compreensão dos comentários de cada vez que escrevi utilizei uma cor diferente. Ficou um post multicolor, portanto.)

Post-it de certeza final: deixo a discussão, vou para as músicas do mundo em Sines e espero que lá não haja destes recursos. Por isso não creio que, lá para o fim da semana me lembre de continuar este post. Se algum sentido tiver irei transferi-lo para outro blogue dedicado exclusivamente a discutir estes assuntos, e para o qual irei convidar alguns outros bloggers. Pela parte das ideias que me tocam, e dos bloggers que procuro - e porque alguns deles estão a banhos- a discussão fica bem entregue ao Bruno, à Zazie, ao Rui Bebiano, às dúvidas e desalinhamento do Miguel Vale de Almeida e da Fernanda Câncio. Incendiamo-nos com palavras, como dizia alguém na caixa de comentários do Mal. Talvez haja algum sentido nisso. Talvez pensemos que as palavras alumiarão o caminho para Damasco, nesta noite terrível pelo pensamento. Aproximamo-nos da tragédia. Ao mesmo tempo ela parece ser a nossa morte e a nossa redenção como humanidade. É entre os escombros, entre as famílias que perdemos, entre os amigos, os vizinhos mortos - e já nem é preciso grande empatia com o outro, basta-nos algum treino na sociedade do espectáculo para sentirmos na morte e destruição lá longe a nossa própria dor - que perceberemos novamente a cor das bandeiras que desfraldámos. Afinal o que deveremos temer é o viveiro de monstros que acobertamos naquilo a que ainda vamos chamando identidade. E se isso se passa com cada um, imagine-se isto transposto para o plano das identidades colectivas. Vou-me embora. Talvez a música, a música de um mundo global, ali entre as areias das praias de Sines, me devolva alguma crença na puta da natureza humana, como se diz lá para os lados de Elsinore.

2 comentários:

Anónimo disse...

Uma pessoa está um tempo sem cá vir e pimba, já vamos em metro e meio de pensamento entrecortado e (ainda) incompleto.

Larga a braguilha ao Líbano, disse-lhe eu. Agarrou a do mundo inteiro numa só posta. É caso para dizer, cedo piaste. :)

Anónimo disse...

Depois de tanto trabalho, bem mereces ir para a praia..Coitados dos habitantes de Beirute/Haifa que não podem ir à praia. E a praia, ali tão perto...