A minha avó tinha jeito com as mãos.
Durante as tardes longas de verão que eu e o meu irmão gastávamos em brincadeiras naquele largo quintal, a minha avó costurava.
Nós desenhávamos estradinhas com a pá da braseira, e dávamos corpo a uma cidade em escala pequenina. O meu irmão era sempre polícia, eu trabalhava sempre no quadrado que era a biblioteca (isto tudo muito antes do Dogville).
A minha avó, à soleira da porta, passajava meias ou bordava. Naperons.
Nunca percebi muito bem porque gastava horas naquilo.
Ciosa das rosetas nascidas de um rodopio de agulhas.
Que depois me oferecia e à minha prima para o enxoval.
A minha avó nunca foi à Suécia. Nem chegou a saber o quer era o IKEA.
Além da minha avó alentejana herdei naperons de tias afastadas e de tetra-bisa avós de quem nem sequer há fotografias desbotadas.
A minha mãe, mulher filha de pleno século XX, ainda incubou esta febre maligna do naperon e do saco de pão bordado.
A comichão que me fazia a pontinha do naperon inclinado por cima da televisão que sempre ouvi dizer que tinha a minha idade.
Tapava a cara dos actores da novela das oito e as partes emocionantes dos jogos sem fronteiras em que a Amadora ou Moura estavam perto de ganhar, mas a gracinha tão portuguesa da tralha em cima da televisão era um assunto sagrado para a minha mãe.
Outros objectos pontuais em cima da caixinha mágica (que em casa da minha avó também sempre tinham existido, lembro com exactidão uma estatueta do Padre António Vieira munido de um dos sermões): uma moldura com uma fotografia antiga, e uma jarra que às vezes tinha flores.
Um dia a jarra foi derrubada por uma corrente de ar e lá se foi a televisão com a minha idade.
Mas ficou o naperon.
Uma vez por mês, a minha mãe abria a arca que cheirava a sabonetes florais de lojas caras e trocava o jogo de naperons.
1 comentário:
que lindo! fizeste-me recordar a sevilhanha em cima da televisão e um estatueta de um cavalo com uma perna levantada que já tinha fita cola à volta do joelho pois uma vez caiu e partiu-se, mas mesmo coxo nunca deixou de ocupar o seu posto em cima da televisão. Ah, ambas objectos estavam, é claro, em cima de um naperon também bordado pela minha avó.
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