segunda-feira, dezembro 04, 2006

Há mais vida no viver

Vou agora tratar do meu problema e da cara de pessoa viva.
Ser da crueza desta vida.
Da mesma forma que tu te separaste do teu problema de pessoa viva, também eu vou reconhecer que é ainda muito cedo para tratar do meu problema de pessoa morta.
Tu morreste mesmo.
Por mais gracejos que nós façamos com isto, desta vez não é um mero atraso.
Não foste à casa de banho dar um último retoque na maquilhagem.
Espero que um dia, quando chegar a minha hora de me despedir do meu problema de pessoa viva, comprove a existência dos deuses em que descreio e te encontre, num lugar qualquer onde a ausência de fisicalidade não impeça o reconhecimento.
Sou um agnóstico contrafeito. Para mim o mundo seria tal e qual como é quando fecho os olhos e tudo vive em mim tão intensamente como este real com o qual, agora, me resigno à tua morte.
Um dia destes vou plantar-me diante da minha janela e vou provavelmente escolher uma forma temporária de loucura que me permita retomar esse imenso diálogo contigo. Faço-o com outros que entretanto já nem pela consoada se fazem representar neste puzzle de vivos.
Por falar em puzzle: a minha pele é uma manta de retalhos formada de muitas camadas onde vivem, indistintamente, vivos e mortos.
Eu não sei o que é a morte e o que é a vida. Nunca soube. Os mesmos dedos imaginários com que já matei centos de vivos estendo-os muitas vezes, reanimando corpos que a ciência do mundo físico dava já por cadáveres.
Há pouco descemos o cemitério de Benfica, que há uns anos descemos juntos. Nessa altura tu estavas viva e querias compreender os teus mortos.
Doeu-me tudo. A água da chuva. O vento. A tua cara de pessoa viva. Não sei se foi do choro, da intensidade com que eu era água, ou provavelmente, daqueles pés com botainas,
das mãos ritmadas sachando e enchendo a tua campa num ritmo que me trouxe o fervor dos ciclos da terra, o que sei é que comecei a ficar inusitadamente feliz.
Eu tinha ido ali para assistir à morte e ao fim do teu corpo de pessoa viva, e antes mesmo do teu corpo ser já parte da terra, ele era já o ritmo e o cheiro do renovo.
Lembro que me encostei a uma árvore e a pouco e pouco substitui o choro de um irmão pela tranquilidade de um encantamento de um entre outros.
Há mais vida no viver.

6 comentários:

crabbyblue disse...

.

Anónimo disse...

Eu gostava de quando morrer ter vivido perto de alguém que escreve assim.....obrigado.

Sarah disse...

Eu gosto de estar viva e de viver perto de alguém que escreve assim.

Anónimo disse...

abraço.

Anónimo disse...

não há palavras que descrevam o que se sente perante injustiças como esta...não sei se foste para uma esfera melhor mas quero acreditar que estás bem.
É verdade que há muito não te via mas é nestes momentos que vemos que não somos indiferentes aos outros que alguma vez, mais perto ou mais longe, mais frequentemente ou menos, se cruzaram connosco.
A presença fisica deixa de existir, mas a lembrança...essa é para sempre

Mafalda disse...

é verdade...morreram e não podemos fazer nada!
César: onde o mundo acaba, os teus sonhos começaram!e...alguns dos nossos sonhos terminaram...meu irmão!!
estou a tentar sentir-te, mas é difícil...estás longe...já não te posso tocar...sinto a tua falta, de vocês todos!