quarta-feira, janeiro 10, 2007

O diário de todos os dias

Esta ideia de escrever num blogue que se torna assim num diário público, faz-me remontar à minha relação com a escrita diarística. O primeiro diário que me entusiasmou a sério para este estilo foi o de Anne Frank. Eu na altura lia muito e lia com uma pureza e uma inocência que nunca mais consegui recuperar. Nutria-me com aquilo que lia como, depois, me passei a alimentar do que escrevia. O meu primeiro diário comecei-o aos treze anos e era já o relato de uma falha. Uma perda. Faltava-me o lugar da infância. Fazia-me confusão tudo. O cheiro a podre da Petroquímica, as pessoas não me reconhecerem todas no meio da rua, os grandes prédios, o elevador que roncava, o seu espaço exíguo e aquela compressão de olhares encabulados enquanto o ascensor ía debitando andares, uma revolução que desordenava o meu pequeno, alinhado e seguro mundo. O grande supermercado. A pressa. Não fui grande amante da cidade, quando a conheci. E o meu diário era isso, o registo vivo da dor de um campónio. Depois travei conhecimento com outros diários. O Exame de Consciência, de Somerset Maughan (foi com ele que comecei a sonhar com Paris), foi talvez o mais importante. Num miúdo de treze anos, ainda por cima no epicentro de uma revolução, o ler e o escrever eram retirados a tempos essenciais como os de jogar à bola na rua, descer o Vale de Silêncio de carrinhos de rolamentos, conquistar países com um prego espetado na terra molhada, jogar ao bilas, deitarmo-nos de papo para o ar comendo gelados de cinco tostões enquanto decidiamos se a miúda mais gira dos prédios era a Mocha ou a Belinha, isto tudo sem contar com mil e um trabalhos revolucionários que por vezes nos acudiam, como ir vender papelão ao ferro velho para comprarmos um maço de português suave ou ritz. Além disso não eram universos partilháveis com a maralha. Não se podia misturar esses prazeres com o falar de Steinbeck, Maughan, Pearl Buck, Morris West, William Faulkner e tantos outros que se alinhavam na Colecção Dois Mundos. A escrita e a leitura eram espaços de solidão, de solidão compartilhada, escolhida. Só mais tarde compreendi que a vida é um beco sem fim por isso mesmo, porque a porta de saída é também a de entrada. Sem disso ter consciência eu criava um refúgio onde reexistia, sem isso poder adivinhar, eu estava a criar um entrincheiramento do qual nunca mais me conseguiria escapar.

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