Aí vinha o lado mais complicado. O processo de mudança de sexo suportado e apoiado pelo Estado iria ter uma fase de um tratamento hormonal que lhe permitiria tornar-se exteriormente uma mulher mas se quisesse completar a transformação teria de a fazer a suas expensas. E eu conhecendo bem Alice, sabia que iria ser assim.Esta história não acabou aqui. Alice, quando me chamou, estava eufórica. O processo de acompanhamento psicológico que tinha feito com que a sua transformação fosse apoiada pelo Estado tinha sido moroso e ela tinha atravessado um longo caminho. Compreendi-lhe por isso a euforia:
- A partir de quando é que te devo chamar Alice?
Ele não me respondeu. E eu senti-me mal por estar preocupado com o meu pequeno problema.
- Alice...
-É difícil, eu sei...
Seis meses mais tarde encontrei-o. Já não estava tão eufórico. Iniciara o tratamento hormonal, mas tudo estava a ser muito mais lento. Muito mais lento do que parecia, principalmente para quem tinha vivido trinta e cinco anos no género errado. Um novo problema. Alice, que ainda era um homem, na sua identidade enquanto cidadão, tinha de procurar um novo emprego. Como fazer? Assumir-se como mulher? Como homem? Apresentar o processo de mudança de sexo que estava a viver? Não era fácil. E nem vos vou dizer o que Alice escolheu. Creio que foi a melhor solução. Qual é que acham que foi?Entretanto passaram-se os anos e eu lentamente deixei de ter contacto com ela. Comunicavamos por email e umas duas ou três vezes por ano telefonava-me, a sua voz estava cada vez mais macia, com uma fina perturbação metálica. Eu sabia que a sua vida não era fácil, o trabalho, os tratamentos, a ansiedade. Um dia telefonou-me muito agitada já perto da meia-noite.
- Boa noite.
- Boa-noite, Alice.- Despediram-me.
Alice estava endividada. Não é preciso muito para perceber o drama porque passava. Tinha cortado com a família e por isso não tinha nenhum apoio familiar. Alguns de vocês estão agora a pensar que se eu colocar Alice a chupar pilas e caralhos no Parque Eduardo VII, ou ali no Conde Redondo, estou a ser um blogger desinspirado, cheio de tiques, de clichés, de frases feitas. É bem provável que sim. Então, a coberto da magia da época que agora finda, conto-vos a verdadeira história de Alice: depois de desligar o telefone foi a um bar gay. Conheceu um engenheiro electrotécnico alemão por quem se apaixonou e com quem vive, mais a sua filha adoptada, sendo hoje a pacata Sra Alice Stauber, que vive algures num chalé na Floresta Negra, nas margens do Danúbio.
sábado, janeiro 06, 2007
Vou tornar-me uma mulher
Neste começo de ano, à força de ter de pensar nalguma coisa, e ainda reflexo da morte de Gisberta, lembrei-me de uma história já amarelecida por alguns anos. Um dia recebo uma mensagem de um amigo meu. Era do F., vou chamá-lo assim. O seu bilhete era lacónico e urgente:
- Vem jantar comigo. Preciso de te contar. Prepara-te.
Quando lá cheguei F. tinha a mesa posta. A tábua do queijos, tostas, pastas, e um vinho tinto alentejano. Arranjou-me uma bebida. Uma caipirinha.
-Senta-te. - pediu ele.
Sentei-me. Ele olhou para mim com olhar desafiante.
- Vou tornar-me uma mulher.
Foi assim.
E o que a seguir me contou deixou-me perplexo. Eu sempre encarara como uma grande naturalidade as questões do género e a sua determinação pelo tipo de orgãos sexuais que temos. Nós nascemos homens e mulheres e, a menos que seja um fenómeno ou uma aberração da Natureza, a correlação entre o nascer homem e ter um pénis e dois testículos era a mesma de nascer mulher e ter uma vagina e os seios mais protuberantes. Eu não sabia que aos cinco anos, a idade que o meu filho tem agora, já um miúdo pode enfiar a pila para dentro das pernas para se sentir um pouco menos homem, para se sentir um pouco mais mulher. Eu não sabia que querer ser o que se sente, aquilo para que se tende, se podia tornar numa obsessão terrível, numa luta interior demolidora. O meu amigo tinha perto de quarenta anos e tinha passado os últimos trinta e cinco sabendo que tinha nascido no género errado. Ao longo do jantar foi desfiando tudo aquilo que tinha sido a sua vida. À medida que me contava eu ía ficando cheio de vergonha. Onde é que eu estive, pensei, onde é que eu estive para não dar conta da dor do meu amigo? É que cinco anos é uma idade em que estas coisas do género não se sabem assim, pelo menos pela negativa. Cinco anos é uma idade ainda muito cedo para se sofrer por alguma coisa que esteja relacionada com pilas e pipis. Eu não consigo perceber este sofrimento humano que decorre desta experiência de negação. Não consigo percebê-lo, não consigo entendê-lo, não consigo compreendê-lo. Acho a porporção demasiadamente grande para aquilo que uma vida pequenina como eu pode calcular em termos de dor, de dor psíquica. O erro natural aparece-me como monstruoso. No hipermercado da nossa espécie as prateleiras do adn deveriam vir salvaguardadas contra estes enganos de reposição do stock humano. E o erro natural agrava-se com a monstruosidade do erro humano. Nós deveríamos saber conviver com isto com mais humildade. Reconhecer o erro natural e corrigi-lo mais atempadamente. Se a sexualidade é uma dimensão fundamental da nossa vida, como aceitar esta realidade? Tudo isto me passava velozmente pela cabeça. Eu estava cabisbaixo, envergonhado. Eu não sabia como, mas tinha a consciência de, no meu não saber, ter sido cúmplice desta barbaridade. Falou-me das colecções de roupa de mulher que ía comprando e deitando fora, escondendo-as no armário, as férias grandes eram sempre um momento de felicidade, de reencontro, a família ía para a província e ele ficava em casa, livre, ela, mulher.
-Eu estava-me ralando para o dinheiro que elas me custavam, eu só queria o gozo de as vestir, de andar por aqui pelo quarto, imaginando que um dia iria ser finalmente uma mulher.
Eu estava prostrado.
-Queres ir-te embora?
-Para onde? -respondi .
Ele sorriu.
-Eu nunca saberei explicar o que é esta sensação. Tenho ido a sites de pessoas que passaram pela mesma experiência do que eu e arranjo algum conforto nisso, mas mesmo assim, pensar que desde os meus cinco anos a minha maior ambição, o projecto de toda a minha vida, é poder ser uma mulher...fazer as tréguas entre o meu corpo e aquilo que sinto...
- E a Cristina, já lhe contaste?
- Foi a primeira pessoa a saber.
- E então?
- Não se conforma.
- Não se conforma?
- Não.
- E então?
- Só aceita se eu me tornar fufa.
- Se tu fores...
- Ela quer ficar comigo.
- E tu?
- Quero ser uma mulher, Quim. Uma mulher linda.
- Gostas de homens?
- Estás com medo?
- Não.
- Não, ainda não gosto.
- Ainda?
- Eu sou heterossexual. É bem provável que continue a sê-lo. Mas isso virá com o tempo.
- Tem a sua lógica.
- Podes achar estranho.
- Tu és meu amigo. Isso não é estranho.
- Estava com medo que tivesses essa reacção.
-Qual?
- Essa. As frases feitas. Claro que isto é estranho. Para mim é estranho à trinta e cinco anos. Nada é lógico. Contei à Cristina e contei-te a ti. Os meus pais ainda não sabem.
- E a tua irmã?
-Também não.
- Como é que podeste aguentar essa solidão?
- Isso agora não interessa. Quero falar-te de como as coisas vão ser daqui para a frente mas primeiro preciso de saber: o que é que vais fazer?
- Eu nada.
- Não vais fazer nada?
- Como é que te vais chamar?
- Alice.
- Alice parece-me muito bem.
- Quero ser uma mulher linda.
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6 comentários:
onde estávamos durante essa dor?
onde estávamos?!
Não! onde estamos???
lamentar o passado é sempre fácil.
O mais estranho nisto tudo é que a nossa sociedade continua a ignorar estes sofrimentos. Deveria importar muito pouco às pessoas o que os outros fazem com a sua vida pessoal, mas é mais fácil pertencer ao rebanho e continuar a acreditar em preconceitos socialmente instalados. É pouco importante como te chamas ou o que fazes enquanto não prejudicas ninguém. Pode não ser normal, pode até ser muito estranho, mas afinal, todos os nossos amigos, independentemente do sexo,têm atitudes estranhas de vez em quando.
ò carago! um engenheiro e um chalé na Floresta negran nas margens do Danúbio não é para todas!
E muito menos com patrocínio estatal para compor o charme em operações estéticas
":O))))
Bom Ano com algum atraso
Há coisas que nos estilhaçam lentamente, num crescendo de intensidade e emoções até terminar num lancinante lamento. Felizmente nem sempre é assim.
vim aqui dar por mero acaso e encontro uma "estória" difícil mas com final feliz :))
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