sábado, janeiro 06, 2007

Vou tornar-me uma mulher

Neste começo de ano, à força de ter de pensar nalguma coisa, e ainda reflexo da morte de Gisberta, lembrei-me de uma história já amarelecida por alguns anos. Um dia recebo uma mensagem de um amigo meu. Era do F., vou chamá-lo assim. O seu bilhete era lacónico e urgente:
- Vem jantar comigo. Preciso de te contar. Prepara-te.
Quando lá cheguei F. tinha a mesa posta. A tábua do queijos, tostas, pastas, e um vinho tinto alentejano. Arranjou-me uma bebida. Uma caipirinha.
-Senta-te. - pediu ele.
Sentei-me. Ele olhou para mim com olhar desafiante.
- Vou tornar-me uma mulher.
Foi assim.
E o que a seguir me contou deixou-me perplexo. Eu sempre encarara como uma grande naturalidade as questões do género e a sua determinação pelo tipo de orgãos sexuais que temos. Nós nascemos homens e mulheres e, a menos que seja um fenómeno ou uma aberração da Natureza, a correlação entre o nascer homem e ter um pénis e dois testículos era a mesma de nascer mulher e ter uma vagina e os seios mais protuberantes. Eu não sabia que aos cinco anos, a idade que o meu filho tem agora, já um miúdo pode enfiar a pila para dentro das pernas para se sentir um pouco menos homem, para se sentir um pouco mais mulher. Eu não sabia que querer ser o que se sente, aquilo para que se tende, se podia tornar numa obsessão terrível, numa luta interior demolidora. O meu amigo tinha perto de quarenta anos e tinha passado os últimos trinta e cinco sabendo que tinha nascido no género errado. Ao longo do jantar foi desfiando tudo aquilo que tinha sido a sua vida. À medida que me contava eu ía ficando cheio de vergonha. Onde é que eu estive, pensei, onde é que eu estive para não dar conta da dor do meu amigo? É que cinco anos é uma idade em que estas coisas do género não se sabem assim, pelo menos pela negativa. Cinco anos é uma idade ainda muito cedo para se sofrer por alguma coisa que esteja relacionada com pilas e pipis. Eu não consigo perceber este sofrimento humano que decorre desta experiência de negação. Não consigo percebê-lo, não consigo entendê-lo, não consigo compreendê-lo. Acho a porporção demasiadamente grande para aquilo que uma vida pequenina como eu pode calcular em termos de dor, de dor psíquica. O erro natural aparece-me como monstruoso. No hipermercado da nossa espécie as prateleiras do adn deveriam vir salvaguardadas contra estes enganos de reposição do stock humano. E o erro natural agrava-se com a monstruosidade do erro humano. Nós deveríamos saber conviver com isto com mais humildade. Reconhecer o erro natural e corrigi-lo mais atempadamente. Se a sexualidade é uma dimensão fundamental da nossa vida, como aceitar esta realidade? Tudo isto me passava velozmente pela cabeça. Eu estava cabisbaixo, envergonhado. Eu não sabia como, mas tinha a consciência de, no meu não saber, ter sido cúmplice desta barbaridade. Falou-me das colecções de roupa de mulher que ía comprando e deitando fora, escondendo-as no armário, as férias grandes eram sempre um momento de felicidade, de reencontro, a família ía para a província e ele ficava em casa, livre, ela, mulher.
-Eu estava-me ralando para o dinheiro que elas me custavam, eu só queria o gozo de as vestir, de andar por aqui pelo quarto, imaginando que um dia iria ser finalmente uma mulher.
Eu estava prostrado.
-Queres ir-te embora?
-Para onde? -
respondi . Ele sorriu.
-Eu nunca saberei explicar o que é esta sensação. Tenho ido a sites de pessoas que passaram pela mesma experiência do que eu e arranjo algum conforto nisso, mas mesmo assim, pensar que desde os meus cinco anos a minha maior ambição, o projecto de toda a minha vida, é poder ser uma mulher...fazer as tréguas entre o meu corpo e aquilo que sinto...
- E a Cristina, já lhe contaste?
- Foi a primeira pessoa a saber.
- E então?
- Não se conforma.
- Não se conforma?
- Não.
- E então?
- Só aceita se eu me tornar fufa.
- Se tu fores...
- Ela quer ficar comigo.
- E tu?
- Quero ser uma mulher, Quim. Uma mulher linda.
- Gostas de homens?
- Estás com medo?
- Não.
- Não, ainda não gosto.
- Ainda?
- Eu sou heterossexual. É bem provável que continue a sê-lo. Mas isso virá com o tempo.
- Tem a sua lógica.
- Podes achar estranho.
- Tu és meu amigo. Isso não é estranho.
- Estava com medo que tivesses essa reacção.
-Qual?
- Essa. As frases feitas. Claro que isto é estranho. Para mim é estranho à trinta e cinco anos. Nada é lógico. Contei à Cristina e contei-te a ti. Os meus pais ainda não sabem.
- E a tua irmã?
-Também não.
- Como é que podeste aguentar essa solidão?
- Isso agora não interessa. Quero falar-te de como as coisas vão ser daqui para a frente mas primeiro preciso de saber: o que é que vais fazer?
- Eu nada.
- Não vais fazer nada?
- Como é que te vais chamar?
- Alice.
- Alice parece-me muito bem.
- Quero ser uma mulher linda.
Aí vinha o lado mais complicado. O processo de mudança de sexo suportado e apoiado pelo Estado iria ter uma fase de um tratamento hormonal que lhe permitiria tornar-se exteriormente uma mulher mas se quisesse completar a transformação teria de a fazer a suas expensas. E eu conhecendo bem Alice, sabia que iria ser assim.
Esta história não acabou aqui. Alice, quando me chamou, estava eufórica. O processo de acompanhamento psicológico que tinha feito com que a sua transformação fosse apoiada pelo Estado tinha sido moroso e ela tinha atravessado um longo caminho. Compreendi-lhe por isso a euforia: - A partir de quando é que te devo chamar Alice?
Ele não me respondeu. E eu senti-me mal por estar preocupado com o meu pequeno problema.
- Alice...
-É difícil, eu sei...
Seis meses mais tarde encontrei-o. Já não estava tão eufórico. Iniciara o tratamento hormonal, mas tudo estava a ser muito mais lento. Muito mais lento do que parecia, principalmente para quem tinha vivido trinta e cinco anos no género errado. Um novo problema. Alice, que ainda era um homem, na sua identidade enquanto cidadão, tinha de procurar um novo emprego. Como fazer? Assumir-se como mulher? Como homem? Apresentar o processo de mudança de sexo que estava a viver? Não era fácil. E nem vos vou dizer o que Alice escolheu. Creio que foi a melhor solução.
Qual é que acham que foi?
Entretanto passaram-se os anos e eu lentamente deixei de ter contacto com ela. Comunicavamos por email e umas duas ou três vezes por ano telefonava-me, a sua voz estava cada vez mais macia, com uma fina perturbação metálica. Eu sabia que a sua vida não era fácil, o trabalho, os tratamentos, a ansiedade. Um dia telefonou-me muito agitada já perto da meia-noite.
- Boa noite.
- Boa-noite, Alice.
- Despediram-me.
Alice estava endividada. Não é preciso muito para perceber o drama porque passava. Tinha cortado com a família e por isso não tinha nenhum apoio familiar. Alguns de vocês estão agora a pensar que se eu colocar Alice a chupar pilas e caralhos no Parque Eduardo VII, ou ali no Conde Redondo, estou a ser um blogger desinspirado, cheio de tiques, de clichés, de frases feitas. É bem provável que sim. Então, a coberto da magia da época que agora finda, conto-vos a verdadeira história de Alice: depois de desligar o telefone foi a um bar gay. Conheceu um engenheiro electrotécnico alemão por quem se apaixonou e com quem vive, mais a sua filha adoptada, sendo hoje a pacata Sra Alice Stauber, que vive algures num chalé na Floresta Negra, nas margens do Danúbio.

6 comentários:

Mónica (em Campanhã) disse...

onde estávamos durante essa dor?

Anónimo disse...

onde estávamos?!
Não! onde estamos???
lamentar o passado é sempre fácil.

Anónimo disse...

O mais estranho nisto tudo é que a nossa sociedade continua a ignorar estes sofrimentos. Deveria importar muito pouco às pessoas o que os outros fazem com a sua vida pessoal, mas é mais fácil pertencer ao rebanho e continuar a acreditar em preconceitos socialmente instalados. É pouco importante como te chamas ou o que fazes enquanto não prejudicas ninguém. Pode não ser normal, pode até ser muito estranho, mas afinal, todos os nossos amigos, independentemente do sexo,têm atitudes estranhas de vez em quando.

zazie disse...

ò carago! um engenheiro e um chalé na Floresta negran nas margens do Danúbio não é para todas!

E muito menos com patrocínio estatal para compor o charme em operações estéticas

":O))))

zazie disse...

Bom Ano com algum atraso

NARNIA disse...

Há coisas que nos estilhaçam lentamente, num crescendo de intensidade e emoções até terminar num lancinante lamento. Felizmente nem sempre é assim.

vim aqui dar por mero acaso e encontro uma "estória" difícil mas com final feliz :))