sábado, abril 07, 2007

Os sinos da minha aldeia

Tocavam as nove horas quando eu disse que não. Quando acabei de o dizer, repenicaram os sinos. É por ser Páscoa. É por ser Páscoa e as minhas memórias estarem todas ligadas ao tocar dos sinos, pensei. Os carrilhões de Mafra. Um dos maiores orgulhos do meu pai era o de o seu jornalinho ter servido para a campanha que trouxe os carrilhões de volta à vila de Mafra. Nos claustros do Convento, era talvez Verão, o meu pai e a minha mãe usavam um casaco de malha fina e íamos com o ar descontraído, eu e os meus irmãos vestiamos de igual, de cores diferentes, calções curtos, camisete de algodão. Éramos das poucas famílias que se deslocavam ao interior do Convento para escutarem o concerto de carrilhões. E eu não sabia porquê. Afinal era o animador orgulhoso do seu combate que vinha, com os seus. Era um belga que os tocava. E tinha trazido a sua família. Lembro-me da sua mulher, uma senhora belíssima, alta, serena, e os seus dois filhos, um casal. Claro que, enquanto o seu pai tocava, platonicamente, me apaixonei pela filha. Aqueles fins de tarde ainda hoje me parecem momentos do paraíso. Havia talvez uma brisa. O meu pai tinha acabado o trabalho e a família juntava-se toda. O meu pai era um homem muito bonito. Esse foi aliás um dos argumentos que o homem da marcenaria onde ele aprendia utilizou para contra argumentar a vocação para o sacerdócio que a minha avó lhe descobrira. Um homem tão bonito nunca será de Deus, senhor Padre, disse ele. O som dos carrilhões ecoava pelos claustros. Eu comecei a ser feliz assim, na platonia. Na entrega a um amor solitário, fechado sobre si mesmo, oculto dos seus sentimentos. Sou aquele que escreve textos, alguns mais felizes outros menos, sobre o amor. E que o desconhece profundamente no ser em dádiva que ele projecta. Um ser rasgado pela sua incompletude. Sou um celibatário profundo, se é que essa doença existe. Por vezes gostava que sim, que existisse e que existisse enquanto tal, enquanto doença, que eu pudesse marcar uma consulta à minha médica de família e lhe dissesse, olhe, é o meu celibatarismo profundo outra vez, tal como quando se tem cólica renal, diabetes ou hipertensão. É claro que com o tempo vamos aprendendo a conviver com o nosso mal d' espirit. Durante muitos anos fui feliz namorando com estudantes erásmus, turistas acidentais que apanhava no Castelo de S. Jorge, e depois, quando a idade foi avançando, comecei a arranjar namoradas com ofícios estranhíssimos, que me permitiam recolher-me a minha casa como se ela fosse um mosteiro. Namorei mulheres-polícia, vendedouras do mercado das flores, assistentes de bordo nas companhias de navegação aérea e marítima, jornalistas, até uma espia ligada aos serviços alfandegários. A última foi a mais feliz, uma faroleira das Berlengas. Foi o amor mais perfeito que tive na minha vida. Eu ia até ao Baleal, à minha praia de sempre, e mandava-lhe um sms. Ela respondia-me num código de luzes que tinhamos apurado com o tempo de namoro. Uma vez um navio russo interceptou a nossa comunicação e foi parar ao molhe de Viana do Castelo, por causa disso. Em três anos de namoro devo-a ter visto uma dúzia de vezes. Íamos casarmo-nos por correspondência. Já nem sei porque é que acabou por não dar certo. Sou assim, esqueço-me das coisas. Provavelmente baralhei tudo e mandei as longas cartas de amor que me consumiam as noites para o meu afecto anterior, a espia dos serviços alfandegários. Com o fim das fronteiras eles desactivaram tudo. E desde que começaram a vender património, tudo mudou. Talvez os quilómetros de amor romântico e epistolar repousem agora numa mansarda atulhada de móveis, dossiers e papéis velhos. Eu estranhei, as outras não, mas a faroleira era-me muito dedicada. Achei que se tinha esquecido de mim, que tinha encontrado algum marinheiro russo, sei lá. A vida é um saco de surpresas. Tudo pode acontecer. Foi exactamente assim que terminei o telefonema, um pouco antes das badaladas que me levaram tão longe na memória. Tudo pode acontecer.

2 comentários:

Anónimo disse...

é bom ler-te, Quim.
toma abraços
lg

JPN disse...

bom, bom é saber-te aí. abç