domingo, abril 29, 2007

Sotão

Quando morei na Ada-Pêra, ali ao pé do Sobreiro, a minha casa tinha sotão. Estava desocupado, com tralhas, caixotes, que nós arrumávamos fazendo dali os nossos espaços de brincadeira. Em dias de chuva o sotão era o nosso lugar de eleição. O João e o Pedro adoravam que eu condescendesse em brincar com eles o jogo dos restaurantes e dos hotéis. Era muito simples. Com uma enxerga velha o meu irmão Pedro ía buscar uma coberta e fazia uma cama. Punha umas velas. Fazia uma divisória com caixotes de revistas. Era um quarto de hotel. O meu irmão João utilizava os caixotes para fazer as mesas do restaurante. Punha-lhes um naperron, feito cm papel ou jornais velhos recortados. As ementas não eram muito variadas mas gozavam com a proximidade que havia entre as escadas de acesso ao sotão e a despensa. Açúcar com água desfeito, para sobremesa. Depois havia uma longa lista de acepipes cozinhados à luz da vela: bolacha maria queimada pela vela, esparguete queimado pela vela. Aparas de bacalhau queimadas pela vela. Uma paparoca qualquer que envolvia manteiga caseira que a minha mãe fazia, cacau e açúcar. O Pedro e o João estavam empenhadissimos em que eu não lhes dissesse não. Por isso, o jogo para eles começava mais cedo. Organizar o restaurante e o hotel e fazer o dinheiro para eu gastar. Nesse entretanto eu andava a fazer viagens pelo mundo e o mundo era o sotão dividido em diversos continentes, todos eles com caixotes de livros, de revistas, de manuscritos. E depois, sob o olhar incrédulo deles que me achavam muito gastador, eu ía derretendo as notas e moedas (passávam o lápis por cima de uma moeda e depois recortávam-na, o João, mais perfeccionista, por vezes até lhe colava um bocadinho de cartolina) que eles me tinham dado. No dia seguinte, se era chuva, lá voltavam ao mesmo. Faziam o dinheiro que eu gastava de forma perdulária, a troco de uma vida de excursionista hospedado nos melhores hotéis da Moradia da Andorinha Negra e barrigadas de acepipes exóticos como aparas de feijão verde cru e pele de bacalhau queimada à luz da vela.

2 comentários:

Cristina Gomes da Silva disse...

Bom prenúncio, essa tua infância no sótão :)

Mónica (em Campanhã) disse...

o mundo depois fica tão pequeno quando crescemos...