quinta-feira, maio 31, 2007

Um dia depois da greve

O ministro e o sindicalista no Prós e Contras já tinham dito tudo o que de mais relevante há a dizer sobre o que os divide: trata-se de um jogo. Eu tinha visto de relance Vieira da Silva num ligeiro princípio de enfurecimento. Parecia não compreender. O homem das plataformas sociais, o homem da negociação hábil, um dos arquitectos das políticas sociais de Ferro Rodrigues, e não sei se houve algo mais importante e inovador nesse campo do que esse esforço de conjugar o economês com o socialês, estava a ser acusado, por alguém que o conhecia bem, porque é preciso dizer, isto dos sindicatos são os mesmos actores há dezenas de anos, todos eles têm o telemóvel uns dos outros, de estar unicamente preocupado com números. Esse momento em que Vieira da Silva parecia não compreender e em que quase se esperaria uma reacção imprevista que o fizesse sair do jogo, passou, e tudo se voltou a concentrar novamente nesse caso único de televisão que é Fátima Campos Ferreira, e claro, a sua estilista.
Foi antes da greve. Veio a greve, pouquíssimo geral. Um dia depois é preciso, empunhando bem alto os estandartes, repetir a razão do sindicalista: vive-se pior em Portugal.
Não é um slogan. A indigência é sobretudo ética: a exploração do ser humano pelo ser humano aumentou. A força de trabalho não dignifica o esforço humano e muito menos as condições básicas de dignidade da pessoa humana. O que já não interessa muito: a pessoa digna é um bem em perda na bolsa de valores sociais. Valorizamos outras coisas. O mediatismo. A dinheirama. O poder. A popularidade. Mas digam lá, há quanto tempo não viramos a cara para o lado para seguir o traço ou o trajecto de uma pessoa digna?
É obsceno o país de desigualdades sociais que estamos a desenvolver. São indicadores não oficiais. O sindicalista tem razão. É uma conversa longa, esta. Temos poucos instrumentos para o discutirmos em conjunto. Uma parte de nós foi criada no paradigma do "É mais fácil um camelo entrar no buraco de uma agulha do que um fariseu entrar no reino dos céus". Outra parte educou-se na denúncia "desta pequena coutada onde mandam uma meia dúzia de figurões". Outros, sublimaram-se na ideia de que " podes comer faisão e eu peixe miúdo mas temos em comum o facto de ambos vermos o mundo pelo canudo".
Que evidências é que podem pessoas fazer com esta patchwork ideológica? Nenhumas. A menos que marquemos encontro no Lidl, no MiniPreço, no Continente e no Feira Nova, na Fnac ou no Colombo. Aí sim podemos sentir comportamentos, pensamentos comuns. Com cartão ou sem cartão, em cash ou a crédito, há qualquer coisa que uma fila de supermercado tem de fortíssimo para uma criação identitária comum entre os mais diversos tipos sociais. Estou a falar depressa demais, eu sei. É a chamada filosofia da pastilha elástica. Nós não estamos habituados a discutir estas coisas em conjunto. São património de sindicalistas, de governantes, e esses têm de fazer a gestão do ódio.
Ouçam: o nosso futuro é algo muito sério para o deixarmos apenas nas suas mãos.

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