sexta-feira, junho 08, 2007

O choque existencial

Ao ver este blogue sou levado um pouco a fazer uma viagem na memória e de repente dou por mim a olhar e a pensar na minha vida. A pensar a minha vida. Os meus verdes anos. Não há nada nela de verdadeiramente extraordinário. Vivi até aos dez anos num lugarejo, numa vilória, que não teria outra importância senão aquele convento que se impunha em redor do povoado. Depois, ao começar dos anos setenta, vim para Lisboa, para os Olivais Sul, um bairro onde a ideia de vizinhança muito se aproximava à que eu trazia de Mafra. Mas mesmo assim o choque existencial que isso significou para mim foi imenso. Cultivei a nostalgia. Eu sonhava que vivia em Kripton, que abria os braços e voava, visitando não só um amor perdido que tinha deixado em Mafra como os meus melhores amigos. Quando cheguei a Lisboa foi o cargo dos trabalhos. Não só estava cheio de imagens do verde dos campos, das brincadeiras pelas desoras do lugarejo onde vivia, do trigo, dos passeios no rio, dos clubes de investigadores, de uma liberdade que hoje o meu filho não pode disfrutar, também a minha integração foi dificil. Eu dava-me bem na relação interpessoal, tinha bons amigos, mas dava-me mal com os grupos. Se tivesse levado a sério metade das patifarias que me faziam teria tido uma existência traumatizada. Principalmente naquele longo verão de 77 ou 78, quando na minha rua começaram a chegar grupos vindo de fora e eu me tornei o alvo preferido das perseguições do grupo que fazia excursões à minha pila de não-circuncisado. O termo técnico era amostras e acabava, invariavelmente, sempre com um calmeirão que lhe sobrava em tamanho o que lhe faltaria em juízo, a assegurar-me cientificamente que o meu pénis era pequeno e que eu nunca poderia ter filhos. Já contei isso uma vez. Esse meu azar acabou por ser a minha sorte. Por causa dele, dediquei-me a conhecer e amar mulheres sensíveis, delicadas, e que, antevia eu, não me envergonhassem. E tenho tido sorte. Ao procurar mulheres sensíveis e delicadas encontrei-me também a mim, na afectação à delicadeza e à sensibilidade. Eu comecei por pensar que só as mulheres ficavam belas e únicas e doces com esse travo fresco de hortelã, tomilho e manjericão e dei por mim a descobrir que tudo, tudo mesmo, ganha expressão no silêncio delicado e sensível de um ser a destapar o pedaço de mundo em que toca.

2 comentários:

Alba disse...

Falas das tuas memórias com um lirismo que casa muito bem com a crueza que utilizas. Perfeito!

Leonor disse...

Que curiosas as suas memórias de Mafra. Moro no Sobreiro e dessa Mafra que fala - não que a vila fosse particularmente interessante nesse tempo - nasceu betão por todo o lado.
Cumprimentos