sexta-feira, junho 22, 2007

O compromisso

Há um compromisso no escrever. Li-o uma vez em Sartre e nunca me esqueci. Foram poucas as coisas que Sartre me ensinou, mas as que me ensinou ficaram. Ficaram ainda. Ficarão para sempre? Um dia, ao fazer dezoito anos, o meu pai ofereceu-me "Com a Morte na Alma!". É um livro grande que nunca li. Tem uma dedicatória. "Aos dezoito anos, para o Quim Paulo ler e reflectir comigo". Li a dedicatória. Cada vez que penso nisto tento imaginar os dias anteriores do meu pai. Como é que aquele homem austero, prático e sonhador, teria chegado à evidência de que me queria oferecer aquele livro? Porque é que ele - como em todos os outros anos - não descartou a escolha na minha mãe, ficando apenas com o trabalho suplementar de me dar uma nota de cinquenta escudos? Estávamos em 1980. Eu escrevia muito já. Escrevia como não escrevo agora. Escrevia para me libertar, para me identificar, para me construir. O compromisso da escrita não é só com os outros. Eu levava a escrita muito a peito. Escrevia a tinta permanente e depois na Princess, uma máquina com teclado hcesar. Como eu gostava de escrever quando a fita ainda estava nova e a máquina estava oleada! Eu dividi a máquina com o meu pai. Como os putos hoje na play station. Era uma ânsia. A primeira coisa que eu fazia quando ele chegava a casa era perguntar-lhe, hoje vais trabalhar, e se ele dizia que ia, eu ficava num alvoroço.
O meu pai começou a ganhar afecto pelo que eu escrevia. Por ver-me escrever. Talvez se visse a ele, não sei. Nunca me pediu que eu fosse engenheiro, médico, advogado, economista. Nunca me tentou arranjar nenhum emprego. Nunca me veio dizer que o teatro não dava para governar uma vida. Nem insistiu que eu estudasse, quando acabei o 12º Ano e resolvi ir trabalhar. E só quando resolvi, anos mais tarde, ir para a Universidade, percebi a alegria que lhe daria ao prosseguir os meus estudos. O meu pai só me pediu que fosse feliz da maneira certa. Pediu-mo com os olhos, com a boca, com as suas mãos rudes, tímidas. E eu sabia, essa forma de ser feliz, estranhamente para um católico, e crente com fervor, estava muito próximo de Sartre. Existe, meu filho, parecia-me dizer. É claro que choro ao escrever isto mas não há em mim alguma mágoa. Ele nunca se foi embora. E eu estou muito feliz para algo me poder entristecer. Estava apenas a lembrar-me do afecto que o meu pai começou a ganhar pelas coisas que eu escrevia. A certa altura foi ele que começou a vir ter comigo ao quarto e a dizer-me,
já podes levar a máquina, Quim.
E depois comprou uma máquina eléctrica e deu-me a Princess. A minha princesa. Tornei-me um escritor profissional lá em casa. Tinha uma relação própria e única com a máquina. Podia até atrasar-me para a sopa, o
agora não posso, estou a escrever uma coisa,
parava o mundo.
O meu irmão mais novo e o mais velho ficavam cheios de inveja. O meu pai dizia-lhes, deixem lá. Era como se fosse ele a escrever, gosto de pensar. A partir daí era eu que tratava dela. Levava-a a arranjar, ía-lhe comprar os rolos de fita de máquina, limpava-a, tirava-lhe o resto de tabaco enfiado entre as teclas. Se íamos para Caldelas ou para Elvas levava-a comigo.
Mergulhei nesta ideia de escrever já nem sei porquê. Porque me apetece de novo escrever mais fora daqui, do que aqui. E porque a ideia de deixar de escrever aqui me pareceu de uma certa forma um reformular do compromisso implícito ao acto de escrever. Não falo dos voyeurs. Os voyeurs mudam de sítio e nem se apercebem do lugar onde estavam. Falo daqueles e daquelas que vêm ao respirar com o mesmo hábito que tomam uma meia de leite e um pão com manteiga. Eu tenho assim também alguns blogues e alguns blogguers. Não passo sem o Luís, sem a Câncio, sem a Mónica, sem o Bruno, sem a Amélie, sem o Apicultor ou sem a Elisa. Sem esse divertimento que é descobrir qual é a personalidade múltipla que escreveu determinado texto no Oito e Coisa. Sem o Eduardo. Alguns deles escrevem pouco, muito pouco. Mas estou ligado a eles por um compromisso invízivel. Como outros blogguers estarão ligados ao que eu escrevo. E aos quais reconheço, continuando a escrever. Da mesma forma que na minha casa eu era um "escritor", para esta comunidade em ebulição, no momento em que me lêem, também sou escrevente.
Digo-o com algum desconsolo. Tenho escrito muito menos teatro do que me talvez devesse fazer. E não é só falta de tempo ou ocupação do tempo com outras coisas, inclusivé escrever aqui. Ontem encontrei uma holandesa que estava de passagem a fazer um documentário sobre pessoas que estivessem a trabalhar com a cultura. Não era eu que a conhecia, era o Rui Tavares, com quem me cruzei. Ela estava a reunir retratos falados. por sugestão do Rui veio falar comigo. Fomos até ao Trindade. E a certa altura eu fiz um pequeno exercício de memória: por um lado entusiasma-me o dinamismo crescente sobre o trabalho da escrita teatral. Sempre lutei por essa causa. Pertenci durante três anos à Associação Portuguesa de Argumentistas e Dramaturgos por causa disso. Pelo mesmo motivo cheguei a fazer um site sobre escrita teatral, comecei um trabalho de investigação e escrevi artigos. Hoje o panorama é diferente. É importante. É importante que aqueles que escrevem para teatro possam ter uma maior importância no mercado dos produtos culturais. Por outro lado desentusiasma-me uma real falta de interesse pela obra em si. Ora é a obra em si mesma, é a entrega um trabalho hermenêutico que a certa altura coloca a obra em relação com a realidade com o qual ela se vincula, é essa disponibilidade que pode tornar importante a obra. Importante para quem a escreve, importante para quem a lê. Se o texto não resolver nada na cabeça de quem a escreveu, na cabeça de quem o lê, torna-se num objecto que tende para o vazio. Um texto, uma obra, vive principalmente, quer dizer, multiplica-se mais, pela capacidade dinâmica de criar universos de percepção e de sensibilidade particulares no leitor, no espectador.
Há um compromisso no escrever. No ler. Esse compromisso é uma viagem. Uma aventura.

8 comentários:

Cristina Gomes da Silva disse...

Boa tarde, ouvi algures que onde existe escrita, existem sempre, e em simultâneo, um desconforto mais ou menos profundo e criativo e uma vontade forte de o excomungar comunicando-o, partilhando-o. Continua.

Helena (em stª Apolónia) disse...

nem pensar... não és homem de falhar um compromisso ! não teria perdão... deixares de escrever

Elisa disse...

mas quem é que vai deixar de escrever??? Hein?
um beijo, Quim ;-)e mesmo que se escreva pouco e mal... sim, «Há um compromisso no escrever. No ler. Esse compromisso é uma viagem. Uma aventura.»

maresia disse...

:)

Mónica (em Campanhã) disse...

vim aqui, como sempre, tomar o meu café à tua escrita e acresceento que temo que este compromisso seja uma questão de vida ou de morte: se não escrevêssemos, nós (eu, tu, H, D, por exemplo) não existíamos.

CCF disse...

Compromisso ou simples prazer de estar aqui, de escrever, de ser lido? No dia em que não, em que o prazer desaparece, isto faz pouco sentido, mais vale arrumar as malas e escrevinhar nos papéis que chegarão aos que quisermos, apenas a esses. A falta que fazemos é sempre relativa...(não leves a mal estas gotinhas de água fria, claro que também gosto e muito da tua escrita, mas há neste teu post uma espécie de violência, de obrigação...que me custa(assim um "tenho que escrever porque há quem me queira ler!") Ou então interpretei mal, às vezes acontece.
~CC~

Anónimo disse...

parabéns, excelentes pensamentos.

Anónimo disse...

Continua. Sempre, jpn.