domingo, junho 24, 2007

Sermos adultos

Manhã farrusca, a querer comprometer os planos de irmos fazer barro para o jardim. Agora, o costume: um dvd e uma história para acordar o dia.
Trago-lhe o leite. A caneca está quente, eu sei. As canecas aquecem muito no micro-ondas. É sempre assim. O leite está bom. Pega na caneca:
- Está quente. - Com meiguice - O pai é um trapalhão.
- Vais beber o leite, Pedro.
- Não quero. Está quente.
Confesso: sou um melga. Noutras ocasiões tinha resolvido o assunto, mudado de caneca. Hoje não.
- Toma a caneca e vais bebendo o leite, enquanto vês o filme.
- Não quero.
- Então vou apagar a televisão. - Apago a televisão sem desligar o DVD. Ele sente o filme a correr. Tortura, sei agora. Uma comissão de maus tratos infantis não deixará de um dia elencar esta espécie subtil de tortura.
Ele começa a chorar.
- Podemos falar, se quiseres.
Encolhe-se todo.
- Podemos escolher duas maneiras.
- Não há maneiras nenhumas.
- Há. Ou fazes o que eu mando porque eu sou grande e tu és mais pequeno e aí tu fazes birra para tentares fazer as coisas a teu modo, é certinho, ou então vamos fazer de conta que somos dois adultos e conversamos. Eu tento explicar-te porque é que eu tenho razão e se eu tiver razão tu aceitas, mas se achares que tens razão, explicas-me e eu aceito.
- O pai obriga-me. O pai é sempre assim a obrigar-me a fazer aquilo que eu não quero.
- Se tu tiveres razão, não. Olha, vou-te contar uma coisa do avô. Ele gostava muito de brincar comigo ao jogo das pessoas adultas.
Foi um jogo psicológico. Eu sei que ele está cada vez mais a falar do avô. À noite, dou por ele a olhar muito fixamente para a estrela maior que encontra, é o avô. Consegui que ele deixasse de se concentrar nas suas lágrimas a correr:
- E o pai conseguia ganhar?
- Às vezes ganhava. Ganhava mais vezes ao jogo dos adultos do que a jogar às damas.
- Eu no outro dia ganhei ao pai. Dez a nove. - Foi, pontapés de baliza a baliza, no Vale do Silêncio. Sem favor. Este pequenitates conseguiu esticar a minha baliza.
- E neste jogo também podes ganhar. Eu muitas vezes dou-te razão cá dentro. Não estamos a jogar ao jogo dos adultos mas dou-te razão. É nessas alturas que te venho pedir desculpa.
- O filme está a andar, assim vamos perder tudo.

- Isto não é no cinema. Podemos voltar atrás.

- Mas depois já não temos tempo.
- A escolha é tua: Queres jogar ao jogo de eu ser grande e mandar em ti e tu fazeres birra ou ao do sermos adultos?
- Sermos adultos.
Pego na caneca.
- Olha, esta caneca está quente. Mas se vires, cá dentro o leite não está igual. - Provo. - Agora prova.
Prova.
- Está médio. - E começa a beber.
- Vou ligar a televisão outra vez.

3 comentários:

Anónimo disse...

E pronto, lá fiquei eu maravilhado, uma vez mais, com este novo capítulo da tua história de pai-e-filho. Acho que é por conseguir vislumbrar um pouco do que está para chegar lá a casa.
Abraços
lg

Isabela Figueiredo disse...

Eu com putos é mais assim: se vai haver birra porque a caneca está quente, passo o leite para uma caneca fria, e pronto.
E quanto a argumentos, os mais velhos têm razão, ponto final. E têm-na, por princípio, MESMO QUANDO A NÃO TÊM. Porque se não for assim, no mês seguinte temos os pais a apanhar porrada dos filhos, que é a cena familiar mais frequente a que assisto lá fora. Depois seguem-se os outros meninos, os professores e a socidade em geral.

Ana Saraiva disse...

Uma caneca quente escalda os lábios! E é desagradável beber o leite morno se se prefere que ele esteja mais para o quentinho! Tadinho! ;)