fggg Adenda: Ontem, ao deitar, a mãe disse-lhe: - Já sei que o Pedro ficou triste por o pai não acreditar em Deus. - É que eu acho que é totalmente disparatado, mãe. - Mas sabes, o pai pensa de maneira diferente. - O que eu acho é que é um disparate tão grande. Se Deus não existisse nós não estávamos aqui, nada existia... - Deixa estar, Pedro, quem sabe um dia consegues fazer com que o pai acredite... - Não é preciso, cada um pensa à sua maneira.
segunda-feira, junho 25, 2007
O Deus das nossas pequenas crianças
A minha educação religiosa foi completa. Fui baptizado, fiz a profissão de fé, e o crisma. Casei na Igreja. O meu filho foi baptizado na Igreja. A minha mãe é católica praticante de todos os dias. O meu pai foi padre. O Colégio do meu filho tem nome de santo e faz a apologia da religião católica. Como já não vivo no campo, quando quero encontrar uma sombra fresca na cidade, é numa igreja que me recolho. O catolicismo rodeia-me assim por todos os lados.
A minha vida seria, por isso, muito mais dificil se odiasse a Igreja Católica. Não a odeio. Não consigo amar o Deus do meu pai mas sempre que penso neste exacto deus, escrevo-o com letra grande. Também o de minha mãe. E já me esqueci da tristeza com que vivi a consagração da casa dos meus pais ao Sagrado Coração de Maria, pelo Bispo Dom José Ribeiro. Eu chorava violentamente, ajoelhado diante do quadro e ninguém pensou ou aceitou que a minha ausência pudesse diminuir menos a consagração do que o abundante rio que me nascia nos olhos. E já só me consigo lembrar da longa conversa com que o meu pai me livrou da ida semanal à missa. Não a odeio. E é por não a odiar que para mim é uma evidência pacífica a partilha da ideia de Caeiro: tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
Quando chegou a altura do Pedro poder ser baptizado, não me opús. Embora também em nada tivesse colaborado. E fiz um acordo intímo com a minha mulher: ela nunca esperaria que eu me encarregasse da educação religiosa do meu filho e, quando chegasse a altura, eu iria contrapôr-lhe à construção religiosa, uma ideia laica sobre a vida.
Ontem percebi que essa altura chegou. Estavámos atrasados, estamos sempre, a única coisa que não atrasa é a brincadeira, eu queria-lhe dar banho. Ele que não, e não e não. Despi-o, no meio de uma guerra de cócegas, de palmadas e beliscões. Agarrei-o ao colo como se fosse um cabritinho e levei-o para a casa de banho. Ele, a rir:
- Não pai, não quero tomar banho, por amor de Deus!
- Qual amor de Deus!!! Eu não acredito em Deus.
Pousei-o em cima da tampa da sanita, como sempre.
- O Pai não acredita em Deus?
Hesitei. Não queria ter esta conversa agora. De forma distraída disse:
- Não.
- Ó Pai! As pessoas que não acreditam em Deus são pessoas más.
Dei-lhe banho. Ao sair do banho percebi que o assunto estava em cima da mesa:
- Pai, o pai sabe que foi Deus que criou os homens, para os homens fazerem as casas e que se não houvesse Deus não havia esta casa? Não havia aquele postal ali também. O pai também não existia.
Eu não lhe respondi. Não me apetecia avançar por ele nesse caminho. Queria saber mais dele e do seu Deus, do Deus que ele constrói quando não está comigo.
- Ó Pai! Porque é que o pai não acredita em Deus?
- Se calhar é um problema meu. Como nunca o vi, não consigo acreditar nele. Mas gosto que tu acredites nele. E que queiras ser um menino melhor por causa disso.
- Mas ele é que fez tudo, Pai? Sem ele o Pai não existia, não era meu pai.
Abraçei-o, a ver se a coisa passava.
- Também foi ele que fez este abraço?
- Ele fez tudo pai. Só as pessoas más é que não acreditam nele.
- Então enquanto este abraço durar eu acredito em Deus.
Levei-o, dentro do abraço, para cima da cama, para o acabar de vestir. Pousei-o e logo ele:
- Já acabou o abraço. O Pai já não existe. - Foi à procura da minha roupa, da minha carteira. Andou a brincar com elas.
- Isto já não são as coisas do pai. O pai não existe. Eu não o estou a ver. Nem vou mais falar com o pai.
- Pedro!!!
- Vou deixar de falar com o pai. O pai não existe.
Não era apenas a brincar. Era muito a sério. Ele estava perturbado. Atrasámos tudo ainda mais. Se às vezes já é dificil estando ali, há uma redobrada dificuldade num pai inexistente. Ele não deu conta mas eu fiquei tão enervado cá por dentro que tive uma violenta enxaqueca. O que vale é que, por sorte, coincidiu com o momento em que ele descobriu umas palavras cruzadas que o entretiveram durante muito tempo.
Não lhe disse mais nada sobre o assunto.
Há noite, estava a falar com uma amiga, ela chamou-me a atenção de que para ele poderia ser muito violento ser confrontado com alguém, como o pai, que de um repente, parece destruir a construção do mundo que ele vem fazendo.
É verdade. Os dados já estão lançados. É a diversidade d0 mundo dentro da nossa própria casa. Começo a pensar naquilo que a minha amiga me disse. E começo a pensar que o que é mais violento não é o confrontarmo-nos com a diferença de maneiras de pensar dos outros, mesmo que sejam aqueles com quem nos identificamos. O que é verdadeiramente violento é sermos levados a construir uma ideia, uma construção do mundo, que não suporta a dúvida, a possibilidade de um outro pensar de outra forma. E nós fazemos isso às nossas crianças. Sem repararmos, muitas vezes. Fazemo-lo às nossas crianças com a mesma bondade, ou crueldade, com que o fazemos a nós mesmos.
Dir-me-ão - e é um argumento de peso, não fosse o fundamentalismo um estado mágico, como é a idade infantil - que as crianças não podem ser educadas na incerteza, na dúvida. É claro que este argumento é tanto mais poderoso quando faço parte de uma comunidade que foi educada na crença, no fervor, na reverência a um poder categórico nos seus pressupostos, autoritário nos seus procedimentos, impositivo e regulador . E até mesmo nós, os que transviámos, reconhecemos ( ou não sabemos reconhecer o contrário) que a educação religiosa não nos impediu de, mais tarde, nos abrirmos à ideia de diversidade de formas de pensarmos a vida.
Seria provavelmente melhor que abrissemos a educação dos nossos filhos à incerteza, à dúvida, à especulação. Que o Deus que lhe ensinamos seja sempre uma mão, um amigo, um grão lançado à boa terra.
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5 comentários:
o Pedro tem quantos? cinco anos? acho um discurso espantosamente fundamentalista para essa idade. desculpa... os meus vão à catequese, rezam antes de deitar e tudo mas acho que não saberiam falar assim. deus e jesus são mais um modelo, uma meta, e menos crenças concretas e inabaláveis. talvez tenhas chegado atrasado... ou talvez ajude andarem numa escola laica onde desde logo, vários meninos (assim como alguns amigos deles filhos de amigos nossos) não vão à catequese.
estou impressionada
posso...?
tentando não falar de filhos (que não os tenho) nem de igrejas (eu, de certo modo 'pagã', sem qualquer educação religiosa formal, nem sequer baptizada)...
todos nós nos agarramos efémera ou mais permanentemente a crenças do mais diverso tipo e mais ou menos (ir)racionais.
mais importante que a 'crença' sobre o 'existir' (até porque mais tarde ou mais cedo todos pomos em causa e reflectimos sobre a existência e a origem das coisas) é a 'crença' do 'ser pessoas más'... de se poder ver como 'mau ou má' a si mesmo e aos outros se não existirem determinadas 'permissas'... não poderá ser também aí que começam as 'defesas' e... o 'ódio'?
e a incerteza, a dúvida não é sinónimo de um 'questionamento' no momento e na forma 'certas', pois não?
quem disse que era fácil?! :-)
O pedro tem a sorte de ter pais com quem conversar. hoje é sobre deus, amanhã será sobre o amor, depois será sobre a razão da nossa existência e por aí fora, porque uma criança é um ser que vai crescendo e vai tendo as incertezas e as angústias, e a vontade de querer saber tudo o que se passa à sua volta. é um ser humano. não adianta especular sobre se agora ele está preocupado com o seu deus e com o pai não estar tão em sintonia como ele quereria, porque isso até é bom, fá-lo pensar ainda mais, questionar-se, e pôr algumas "verdades" em causa. com o tempo ele irá perceber que o mundo e o que se diz dele, têm várias perspectivas. há muitas máquinas fotográficas viradas para o mundo. e podemos ter milhentas fotografias todas maravilhosas.
a possibilidade de descoberta dessa aventura é o que de melhor podemos dár aos nossos filhos. sermos os guias que eles nem sonham que existem. agora, deixá-los com os seus deuses e com os homens-aranhas!
M, Luisa, Sweety, obrigado.
Assusta-me que se ensine às crianças que quem não acredita em deus é "mau", é isso que importa. O Pedro verá certamente um pouco mais tarde que não é esse o caso mas quantos continuam a crescer sem "contra-modelos" desse maniqueísmo horroroso?
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